Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 26, 2008

Miriam Leitão Dois mundos

Era uma segunda-feira, feriado de Martin Luther King nos Estados Unidos, e o país vivia uma grave crise econômica. O clima era de incerteza sobre o tamanho do tombo da moeda e das bolsas, dos rombos das empresas, da recessão e da inflação que estavam por vir. Duas diferenças em relação à última segunda-feira: o país em crise era o Brasil, e o mundo era pré-histórico em tecnologia de comunicação.

Na última segunda-feira, os americanos descansavam no seu dia de Martin Luther King, enquanto o mundo acordou em pânico com a recessão dos Estados Unidos e a dimensão desconhecida dos rombos do sistema financeiro americano. O gatilho do pânico foi o pacote de George Bush na sexta-feira anterior, sem medidas concretas. O mundo ficou com aquele desconforto no fim de semana e acordou na segunda-feira irritado. Bolsas despencaram por toda parte: primeiro a Ásia, depois a Europa e, por fim, a América Latina. Um analista usou a palavra carnificina.

Ao longo da semana, o mundo andou aos pulos de quedas e altas ornamentais.

Naquele outro dia de Martin Luther King, o feriado continuava sendo deles, mas a crise era só nossa. Foi há nove anos. O Brasil tinha acabado de ser empurrado pelo mercado para a desvalorização agressiva do real de 1999.

O Banco Central tinha tentado fazer uma desvalorização controlada, e ela se descontrolou.

O Brasil tinha reservas cambiais mínimas e vivia de um empréstimo do FMI. Tinha déficit de 4,4% do PIB em transações correntes e de US$ 6 bilhões na balança comercial.

A turbulência cambial me pegou nos Estados Unidos tentando voltar para o Brasil e para o meu posto na coluna.

Consegui um vôo no domingo à noite para retomar o trabalho na segunda-feira.

Embarcamos pontualmente, mas o avião não decolou.

Ficou no pátio em Nova York, por horas, até que a tripulação avisou: não voaríamos naquela noite; só ao meio dia do dia seguinte.

Situação complexa. Se ficasse a segunda-feira inteira em solo, escreveria a coluna de lá e a mandaria. Voando durante o dia, teria que enviar o texto de manhã, antes do embarque, numa conjuntura que mudava a cada segundo, com novos fatos, desdobramentos e agravamentos.

No quarto do Ramada Inn, onde fomos instalados pela American Airlines, não havia internet. Só no business center.

Desci cedo para escrever a coluna. A porta do business center estava trancada.

O funcionário que tinha a chave demorou a chegar.

Entrei e escrevi furiosamente no único computador da sala. Acabei o texto e tentei enviar pela internet discada.

Pediu senha. Fui à portaria perguntar: — Infelizmente hoje é feriado aqui, e o rapaz da empresa que administra a sala não está hoje.

— Posso imprimir e enviar por fax — imaginei.

A impressora estava sem papel. Irremediavelmente.

Ela ficava dentro de uma caixa trancada. Não havia como trocar a bobina. Era feriado, e a chave estava com o rapaz da empresa terceirizada.

Olhei para o meu texto escrito, prisioneiro do computador, e tive que sair correndo porque a companhia aérea avisava que era a última chance de ir para o aeroporto.

No aeroporto, corri para a sala VIP. Tinha só um computador com acesso à internet.

E estava sendo usado.

Perguntei a nacionalidade do sujeito.

— I am american.

— Pois eu quero usar o seu computador.

— ???? — A sua economia vai muito bem, a minha acaba de entrar em colapso e eu sou jornalista e escrevo sobre economia.

Convenci. Voei sobre o teclado e escrevi o segundo artigo. Na hora de enviar, o computador pediu senha.

— Quem tem a senha do computador? — perguntou uma atendente às outras.

Ninguém sabia. Buscas inúteis e meu tempo passando.

Até que veio a explicação: — Feriado de Martin Luther King, a moça que sabe está de folga.

O vôo começou a ser chamado, e lá estava meu segundo texto prisioneiro de outra tela. O tempo se esgotava, precisava avisar ao jornal que talvez não mandasse coluna. Mas só usando o telefone da cabine. Eu até era feliz proprietária de um dos 7,5 milhões de telefones celulares que os brasileiros tinham naquela época, mas ele não fazia ligação internacional. Cabine ocupada, voltei à atendente.

— Tem como imprimir e mandar por fax? — Imprimir é possível, mas fax você tem que enviar por aquela outra máquina, se ela aceitar o seu cartão de crédito.

Segunda chamada do vôo.

Imprimi, corri para a máquina.

Digitei o código do cartão. Recusado. Tentei o segundo. Última chamada, senhores passageiros. A máquina engoliu o texto. Entendi que isso era sinal de que o cartão tinha sido aceito e corri para ser a última pessoa a entrar no vôo.

Segunda-feira passada, vi o chacoalhar das bolsas num Brasil e mundo muito diferentes.

Hoje eu tenho dois dos 120 milhões de celulares do país; com internet banda larga sem fio, em casa e no escritório, estou online o tempo todo, inclusive nos aeroportos.

O Brasil tem quase US$ 200 bilhões de reservas cambiais; mais que dobrou seu volume de comércio e o real sobe há anos em relação ao dólar. Os países neo-ricos, como Kuwait e Cingapura, resgatam bancos como Citibank e Merrill Lynch, com seus “fundos de riqueza soberana”.

A tecnologia muda o mundo da comunicação incessantemente.

Duas coisas não mudaram: os americanos folgam no dia de Martin Luther King, e os capitais, quando fogem em pânico, continuam indo para o mesmo lugar: os títulos do Tesouro americano. Mesmo quando o centro da crise é lá, nos Estados Unidos.

P.S.: Naquele dia, a coluna chegou e foi publicada. Defendia que, sem a âncora cambial, o governo precisava de uma âncora fiscal para segurar o real.

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