Artigo - Demétrio Magnoli |
O Estado de S. Paulo |
24/1/2008 |
Na América hispânica, a piñata é um boneco artesanal de papel, recheado de doces. Em ocasiões festivas, as crianças rompem a piñata a pauladas, apropriando-se do máximo de guloseimas que conseguirem capturar. A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) tomou o poder na Nicarágua em 1979, derrubando a ditadura de Anastácio Somoza. As propriedades do clã do ditador foram transferidas para o Estado e os dirigentes sandinistas passaram a viver em mansões que pertenceram aos Somozas. Dez anos e uma guerra civil depois, a FSLN viu-se obrigada a promover eleições, que perdeu. Dias antes da entrega do poder, os sandinistas passaram um decreto, alcunhado como Lei da Piñata, pelo qual as mansões se converteram em propriedade privada de seus ocupantes. Daniel Ortega, o presidente sandinista, tornou-se proprietário de sete imóveis. Tomás Borge e Bayardo Arce, altos dirigentes da FSLN, também participaram da divisão do butim. Depois daquele ato, os sandinistas aliaram-se aos antigos somozistas, tanto na política quanto nos negócios. No ano em que se dissolvia a guerra fria, a piñata sandinista descortinou hipóteses insuspeitadas de articulação entre o Estado, a riqueza privada e os dirigentes de esquerda. A Nicarágua é um país muito mais simples que o Brasil, mas o paradigma estabelecido por Ortega inspira o lulo-petismo na sua trajetória de associação com a "burguesia nacional". A aquisição da Brasil Telecom (BrT) pela Oi (ex-Telemar) é um desenvolvimento estratégico da piñata lulo-petista. A Oi é controlada pelos grupos Andrade Gutierrez, de Sérgio Andrade, e La Fonte, de Carlos Jereissati. A antiga Telemar financiou a fundo perdido a Gamecorp, empresa de Fábio Luiz Lula da Silva. A Andrade Gutierrez desempenhou, nas eleições de 2006, o papel de maior doador de campanha do pai famoso do empresário Fábio Luiz. No desenho da aquisição da BrT, o BNDES desviará recursos públicos para formar a maior parte do capital necessário à transferência patrimonial. A operação criará um quase-monopólio, o que contraria as regras das concessões de telecomunicações. Ela só poderá consumar-se mediante uma canetada de papai Lula, mudando o Plano Geral de Outorgas. A figura da prevaricação descreve o crime de funcionário público que, contrariando a lei, pratica ou deixa de praticar ato de ofício a fim de satisfazer interesse pessoal. Compete aos juristas decidir se a alteração casuística das regras para favorecer a concretização de um negócio específico deve ser tipificada como prevaricação. Como o Brasil não é a Nicarágua, a piñata de Lula depende da fabricação de um artefato ideológico nacionalista. Aristóteles dos Santos, sindicalista petista que ocupa o cargo de ouvidor da Anatel, divulgou um relatório "técnico" no qual aplaude a hipótese de instituição de uma grande empresa nacional de telecomunicações capaz de competir com os grupos internacionais do setor. Encarregado de zelar pelos interesses dos usuários e pelas regras de concessão, o ouvidor avaliza um negócio cuja legalidade depende da mudança nas regras destinadas a proteger a concorrência, que é um interesse público. Samuel Johnson (1709-1784) classificou o patriotismo como "o refúgio derradeiro dos canalhas". Enquanto evolui o bloco carnavalesco do álibi patriótico, Carlos Jereissati e Sérgio Andrade entoam o Hino Nacional diante do altar dos juros subsidiados do BNDES. Na hora da sua inesperada derrota parcial, no primeiro turno das últimas eleições presidenciais, o lulo-petismo agarrou-se, como a bóia de salvação, ao expediente de denunciar um suposto programa privatizante do candidato de oposição. Geraldo Alckmin esquivou-se da obrigação de desnudar o sentido regressivo do discurso eleitoral estatista, preferindo erguer uma patética bandeira de rendição, na forma de logotipos de empresas estatais colados à sua indumentária. A operação Oi-BrT comprova uma vez mais o caráter farsesco daquele discurso, que há muito não corresponde ao programa lulo-petista. Mas, sobretudo, ela evidencia que os ex-socialistas substituíram a sua crença anacrônica nas virtudes das estatais pelo apego interessado a um capitalismo de máfias no qual empresa e empresário devem cumprir o papel de sócios ocultos da elite política detentora do poder de Estado. Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder, descreveu o patrimonialismo tradicional, de raízes lusitanas, que ocupou lugar destacado na construção do capitalismo cartorial brasileiro. Aparentemente, a piñata lulo-petista inscreve-se na linha de continuidade dessa tradição e a nova elite política apenas reproduz a trilha seguida por tantos antecessores que ergueram lucrativas pontes entre a riqueza pública e os patrimônios privados. O fenômeno atual, contudo, tem um traço inovador, que o singulariza. No lugar da simples captura fragmentária da riqueza pública por agentes econômicos e seus intermediários políticos, desenvolve-se um movimento de conjunto pelo qual uma nova elite política, organizada como partido, transfigura o poder de Estado em instrumento de sua associação com os donos do capital. A novidade encontra-se na natureza orgânica do processo. A corrupção da nova elite precisa de um lastro doutrinário, que funciona como solda entre as camarilhas dirigentes e uma base nem sempre passiva de militantes e simpatizantes. O movimento não exclui lucrativas operações pessoais, nem está isento de fricções internas. Mesmo assim, esses são atritos secundários, cujas ondas de choque se esterilizam no jogo de pressões e concessões da máquina partidária lulo-petista. Quando se instalou no Palácio da Alvorada, Marisa Letícia mandou o jardineiro acrescentar uma estrela vermelha aos jardins da residência presidencial. Aquilo era mais que uma travessura: a primeira-dama estava produzindo uma metáfora política e sinalizando um rumo estratégico. Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br |
Entrevista:O Estado inteligente
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