Nada como pôr a culpa no macaco |
Artigo - |
O Estado de S. Paulo |
30/1/2008 |
O ministro José Gomes Temporão atirou no Aedes aegypti e acertou no que não viu quando deu ordem de dispersar as filas de vacinação, dizendo que esse surto de febre amarela não é urbano, mas silvestre. Em outras palavras, não é coisa nossa, mas praga que dá no mato, um problema da natureza a se resolver entre macacos e mosquitos, longe dos jornais e do ministro da Saúde, se os brasileiros não se metessem na floresta com as vítimas e os vetores da doença. Ouvido isso, o País se sentiu convidado a partir para medidas radicais, eliminando macacos. Ou seja, matando as vítimas, talvez por ser “difícil acertar mosquitos em pleno vôo”, como sugeriu o repórter Aldem Bourscheit. Ele fez o primeiro inventário dessa investida popular contra a febre amarela. Em janeiro, executaram-se cerca de 30 primatas em Montes Claros, Cabeceira Grande, Itabira, Buritis, Uberlândia e outros municípios. Em Mato Grosso do Sul houve pelo menos seis baixas. Em Goiás, um terço dos municípios aderiram a essa política informal de prevenção. Não era o que o ministro pretendia. Aliás, ele bem que tentou enquadrar a crise em argumentos racionais, o que nem sempre se pode esperar das autoridades em Brasília. Na internet, a página do Ministério da Saúde está carregada de informações, sinal de que nossos sanitaristas aprenderam a lidar melhor com a opinião pública desde a Revolta da Vacina, o levante contra a vacinação obrigatória que, entre boatos e mal-entendidos, virou de cabeça para baixo o Rio há 104 anos. Os argumentos do Ministério da Saúde são plausíveis, embora incompletos. Omitem, por exemplo, a advertência da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a disseminação da doença na África e na América do Sul, onde as cidades têm gente demais e saneamento de menos nas favelas, só podendo se considerar livres das epidemias quando vacinam no mínimo 80% da população. Isso, pelo visto, não é assunto para se discutir numa emergência. Mas, apesar dos cuidados para não tocar em nervos expostos, Temporão cutucou sem querer um gatilho armado por cinco séculos de história. O Brasil é uma guerra sem-fim entre o homem e a natureza, como dizia o sociólogo Gilberto Freyre. Temos sólida tradição em jogar a culpa no mato. Os portugueses farejavam nos manguezais o miasma insalubre dos trópicos, que fabricava no ar as febres mortíferas do verão. Ainda hoje, no centro do Rio, grandes praças, como o Passeio Público e o Largo da Carioca, marcam no asfalto o contorno de lagoas aterradas em nome da repressão colonial ao impaludismo. Não faz tanto tempo assim que o médico Oswaldo Cruz, enxertando o progresso científico no velho tronco das superstições sanitárias, propôs o entulhamento total da lagoa Rodrigo de Freitas, com restos de morros cariocas arrasados pelas obras de melhoramento urbano. Nossos justiceiros de macacos tiveram a quem puxar. Matam-se macacos agora mais ou menos como se massacravam gatos em Paris no século 18. Na época, 45% dos franceses morriam antes de completar 10 anos de idade, os sobreviventes cresciam sob padrastos e madrastas, porque os pais dificilmente chegavam aos 40, a fome e os piores empregos passavam de geração à outra sem sair da família. Por essas e outras, desses pogroms contra os gatos o historiador Robert Darnton arrancou um ensaio antropológico sobre o lado sombrio do Iluminismo. Aqui, não é preciso ir tão longe. Matança de macacos faz todo sentido numa terra que acaba de bater seu próprio recorde de devastação na Amazônia. |
Entrevista:O Estado inteligente
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