O fato de se estar tornando um ator global não deve fazer o Brasil descuidar do seu entorno geográfico. Por mais poderoso que seja o País e mais globalizada a sua economia, a vizinhança mais próxima deve merecer atenção não só do ponto de vista da parceria comercial, mas, sobretudo, do ângulo político, para poder acompanhar e entender as transformações regionais que podem afetar seus interesses. É o que mostram os exemplos dos EUA em relação ao México e ao Canadá, na América do Norte, e o da China, com sua vizinhança asiática.
No caso da América do Sul, o mapa político e o cenário econômico estão sofrendo profundas transformações. A emergência de movimentos sociais, do poder indígena e de novas lideranças fez ressurgir como foco principal, na área externa, um forte apelo popular nacionalista, antiglobalizante e antiamericano.
Como o governo brasileiro está reagindo a essas transformações e qual a política que tem desenvolvido em relação a seus vizinhos geográficos?
O discurso oficial considera a América do Sul a primeira prioridade da política externa e não se cansa de repetir que nunca na história do Brasil o relacionamento com os países da região esteve tão próximo e tão positivo, não só em termos da relação bilateral, como em termos de integração regional (Mercosul). A política atual insiste em que o Brasil, como o maior país da região, deve tomar a dianteira nas políticas de integração, fazer concessões aos países menores e assumir a responsabilidade de reduzir as assimetrias existentes. Em declarações recentes, o presidente Lula observou que falta vontade política para fazer avançar o processo de integração regional e que as decisões políticas deveriam prevalecer sobre as considerações técnicas.
Já os críticos da política externa para a região consideram que o Brasil não está captando corretamente o sentido das transformações políticas que estão ocorrendo, que nossos interesses estão sendo crescentemente afetados sem uma resposta adequada e que, na realidade, uma agenda que não é a nossa está sendo executada. O Brasil estaria a reboque dos acontecimentos e com dificuldade para conseguir apoio quando estão em jogo candidaturas ou políticas propostas por Brasília, apesar de algumas afinidades político-partidárias e ideológicas. Venezuela, Bolívia, Equador e Paraguai implementam políticas claramente contrárias aos interesses nacionais, sob o olhar complacente de Brasília.
Limitações internas e regionais reduzem as possibilidades de sucesso de propostas muito ambiciosas da política brasileira para a América do Sul.
No plano doméstico, a superficialidade do debate, a dificuldade de delegar ou compartilhar soberania em instituições internacionais e, como observou o presidente Lula, a existência de políticas públicas com viés antiintegração dificultam a consolidação de uma visão brasileira para a América do Sul.
No plano externo, a crise dos projetos de integração na América do Sul, o retorno do nacionalismo econômico em alguns países, a divergência de visões sobre o papel do Estado na economia e a prioridade da inserção internacional, bem como a politização das divergências nas relações entre os países da região, impõem limites ao grau de ambição para a integração regional e para a própria revisão da política brasileira para a América do Sul.
Em trabalho recente (O Brasil e a América do Sul), em que colaborei e com cujas conclusões estou de acordo, o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) procura aprofundar a análise das percepções brasileiras e de política externa em relação à região.
O trabalho toca em três questões que me parecem básicas: quais os objetivos políticos e econômicos do Brasil na região, quais deles devem ser mais bem identificados e aprofundados na agenda brasileira para a região em função dos objetivos definidos e como esses objetivos afetam o posicionamento brasileiro nas relações bilaterais e diante da integração regional.
Para responder a essas perguntas o trabalho indica algumas características do relacionamento do Brasil com a região:
A percepção de que os interesses brasileiros na região se vêm diversificando e que há um processo de adensamento das relações do Brasil com os países da região que não pode ser gerenciado nos marcos da política reativa que têm caracterizado a política regional do Brasil.
O reconhecimento de que os mecanismos desenvolvidos nos anos 90 são insuficientes para lidar com a complexidade de interesses do Brasil na região.
A constatação das dificuldades por que passam os projetos de integração sub-regionais leva alguns segmentos a defenderem maior prioridade ao tratamento de temas não-comerciais e não-econômicos na agenda da região.
O reconhecimento de que se explicita nos últimos anos a existência de uma agenda regional com características e temática próprias, associada à proximidade geográfica e às oportunidades e aos riscos por ela gerados. Energia e infra-estrutura são dois temas dessa agenda cuja dimensão regional não precisa ser ressaltada.
Não será fácil chegar a um consenso sobre a melhor estratégia para a América do Sul.
Qualquer que seja a visão que venha a prevalecer, a criação de um espaço comercial ampliado na região e a defesa intransigente do interesse nacional no relacionamento bilateral deveriam ser, nos próximos anos, os principais fundamentos de uma política criativa e proativa do Brasil para a região.