Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 22, 2008

Febre amarela ontem e hoje

Arary da Cruz Tiriba *



Imediata a identificação da febre amarela, pelo menos, na cor e nomenclatura dos idiomas ocidentais: fiebre amarillo, yellow fever, fièvre jaune, febbre gialla, gelb Fieber. Vômito preto, ainda que repulsivo, foi o seu apelido nos primeiros tempos, por ser sua marca registrada: a expulsão do conteúdo, estomacal, de sangue digerido proveniente das hemorragias internas. Os conquistadores espanhóis do novo continente nem chegavam a ficar demasiado amarelos; quando acusavam a dor, em torno do umbigo, já se tratava do anúncio funéreo. E o amarelão da face era substituído, após a morte, pelo afilamento nasal e a impressionante máscara da palidez de cera. Por isso a febre era temida pelo europeu.

Na África, foi a grande aliada dos nativos, por ceifar o dominador branco muito mais impiedosamente do que os africanos. Que a febre amarela é mais antiga no continente africano do que no americano assim sugerem algumas evidências. A gravidade é algo menor entre os afros. Também os macacos áfricos resistem mais à doença.

A propósito, durante preleção para pessoal da área de saúde, sobre a ressurgência no Brasil Central, a pergunta: "Se o combate aos mosquitos silvestres é impraticável, se macacos, além dos mosquitos, constituem fonte de infecção, em vez de combater mosquitos, por que não exterminar os símios?" Preciosa interlocução pela oportunidade de esclarecer sobre o papel ambientalista do bugio. Seus instrumentos agrícolas: suas fezes ricas em sementes de vegetais e de frutas, que constituem seu regime alimentar. Não acha o leitor que, de alguma forma, o primata não-humano já vem sendo dizimado, seja pelo consumo da sua carne pelo homem, seja pelo desmatamento do seu hábitat? Inversamente, é preciso controlar o caçador.

Por que a doença, comum à África e à América, não se apresenta no continente asiático? Se lá, como aqui, estão igualmente presentes artrópodes sugadores, macacos, criaturas suscetíveis e o ecossistema comparável?! Mistério epidemiológico! Ainda há muito por desvendar sobre a febre hemorrágica. Contudo, ao final do século 19 e durante o 20, as conquistas científicas foram surpreendentes, ainda que dedicados pesquisadores tenham pago o alto preço de sua vida pelas aquisições. Foi a primeira doença em que se demonstrou a transmissibilidade por um inseto. E, das infecções do ser humano, a primeira, outra vez, em que se comprovou um vírus como o agente causal. Ademais, o esclarecimento sobre o ciclo de transmissão silvestre, além do urbano, pôs por terra a esperança da erradicação definitiva.

A antevisão da transmissão pelo mosquito se deve ao médico cubano de origem escocesa Carlos Finlay, "velho lunático" por ter afirmado que a propagação se dava pelo Stegomyia fasciata, hoje, Aedes aegypti. Louco porque era crença arraigada que as doenças eram originadas das emanações pútridas, os miasmas.

A febre amarela está arrolada entre as arboviroses - nada que ver com árvores. Arbovirus advém da junção de ar (de arthropod), bo (de borne) e virus, vírus carreados por artrópodes.

As epidemias assinalaram notáveis conseqüências geopolíticas e econômicas. No Haiti, a febre dizimara as tropas francesas de ocupação. Matara até o comandante da guarnição, general Charles Leclerc, cunhado de Napoleão Bonaparte. A ilha figurava como posto avançado de apoio para alcançar as possessões francesas no continente americano. Com o reinício das hostilidades com a Inglaterra, em maio de 1803, a França se encontrava enfraquecida. Nessas condições, o presidente dos EUA Thomas Jefferson, assessorado pelos ministros Livingston e Monroe, não encontrou dificuldade para convencer o imperador a vender o território da Luisiana, ao norte do Golfo do México. A compra incluía La Nouvelle Orléans (hoje New Orleans), importante centro comercial, o delta e a bacia fluvial do Mississippi. Simplesmente, duplicou a extensão territorial dos EUA! Pela bagatela de US$ 27 milhões, Luisiana, a barganha do século! Segundo referência histórica, a reação de Napoleão: "Com a cessão, os Estados Unidos se transformarão na potência marítima capaz de ofuscar o orgulho dos ingleses." De outra parte, supõe-se que Tio Sam teria ficado grato à yellow jack. Yellow jack? Outra alcunha, referente à bandeirola amarela que as embarcações ostentavam durante a quarentena pela febre a bordo; apelido usado durante a construção do Canal do Panamá, período em que trabalhadores foram ceifados pela febre amarela.

O leitor está informado sobre a recomendação da vacinação para moradores de regiões rurais e silvestres, assinaladas por recente notificação de casos; também para os que se dirijam a tais áreas ou ao exterior. A circulação do homem possivelmente infectado no território nacional, a presença urbana do mosquito Aedes aegypti, transmissor ambivalente para a dengue e a febre amarela, constituem grave preocupação. A vacina antiamarílica oferece proteção individual segura e duradoura, mas não é inocente. À época de pleno verão e férias escolares, o alvo humano se expõe a recreação muitas vezes desgastante.

Importante que os recém-vacinados evitem os seguinte comportamentos: estresse, exercícios "modelo recruta", noitadas, exposição a choque térmico, transas excessivas, consumo de drogas, porres e insolação. Para que não se dê oportunidade ao vírus atenuado da vacina de atuar num organismo fisicamente alterado. Também porque quaisquer queixas surgidas no período proximal da vacinação poderiam ser atribuídas erroneamente ao imunobiológico. A dengue hemorrágica já constitui complicação suficiente para a Organização de Saúde.

* Arary da Cruz Tiriba é médico, livre-docente, professor-titular da Unifesp/Escola Paulista de Medicina (aposentado, em atuação voluntária) E-mail: atiriba@terra.com.br

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