Artigo - |
O Estado de S. Paulo |
23/1/2008 |
Há quem acredite em duendes e quem espere o desembarque de Papai Noel de um trenó puxado por renas chaminé abaixo de casa em pleno verão tropical. O cineasta americano Oliver Stone, o ex-presidente argentino Néstor Kirchner e o sociólogo brasileiro Marco Aurélio Garcia crêem no alívio que as Forças Armadas Colombianas (Farc) trazem ao cotidiano sofrido do pobre camponês de lá. As evidências de que as atividades políticas desses facínoras, que tiram seu sustento da produção e comercialização da cocaína e da manutenção em cativeiro nas piores e mais desumanas condições das pessoas que seqüestram, são similares às de seu parceiro brasileiro Fernandinho Beira-Mar não os demovem de sua fé. Aos 40 anos da morte de Che Guevara e do início das atividades guerrilheiras das Farc, resta-lhes pouco a crer. O chefe do professor Garcia, Luiz Inácio Lula da Silva, presidente de nossa República, aqui, deu mais uma demonstração pública de sua pragmática sensatez ao negar, em Havana, qualquer justificativa de natureza política à evidente violação de direitos humanos pelas hordas do Tirofijo. Palmas para ele! Mas não consta que sua frase exemplar tenha inspirado uma posição mais clara do governo que chefia a respeito da ação criminosa dos traficantes de cocaína aos quais o vizinho presidente da Venezuela, Hugo Chávez, pretende dar status de “beligerantes” em nome de seus bons serviços prestados à revolução bolivariana. Refugiado na definição das Nações Unidas que atribui a categoria de “terroristas” apenas aos fundamentalistas islâmicos suicidas da Al-Qaeda, Sua Excelência mantém o maior país da América Latina num constrangimento de matar qualquer adversário tucano de inveja: fica em cima do muro neste assunto, de enorme relevância para o subcontinente. Confundindo e misturando suas simpatias pessoais com os valores da democracia que foi eleito para dirigir por soberana e maciça maioria popular, o presidente dedica ao sofrimento dos seqüestrados dos sequazes de Manuel Marulanda insensível silêncio, similar ao dedicado às vítimas da tirania de seu amigo Fidel Castro em Cuba. Ao visitar o cubano em casa, Lula perdeu uma boa oportunidade de testemunhar a farsa eleitoral realizada domingo passado para compor o Parlamento que amanhã “decidirá” o destino do anfitrião. Este, mesmo impossibilitado de fazer suas longas arengas em público, foi feito deputado por Santiago de Cuba, cidade tida como berço de sua revolução. E teve a própria higidez atestada pelo hóspede ilustre, não se sabe se por dotes desconhecidos de clínico ou de legista. Se tivesse ficado no Caribe para testemunhar a “eleição” - ato de vontade que implica escolher, e não obedecer -, a devoção que tem pelo decano dos tiranos mundiais talvez não bastasse para impedi-lo de perceber o ridículo de uma disputa de 614 cargos por... 614 candidatos. E quem sabe não passassem despercebidas a seu senso de ridículo a expectativa em torno da “escolha” para a “definição” da sucessão do ditador e a comemoração pela ministra da Justiça, Maria Esther Reus, do elevado comparecimento às urnas: 95%. Esta seria uma excelente oportunidade para o presidente aprender que os plebiscitos e referendos capitaneados pelo mais poderoso castrista fora de Cuba, o venezuelano Hugo Chávez, não asseguram o teor democrático do poder que ele exerce. Não há democracia sem eleições, mas a História relata muitas eleições que resultaram em tiranias que estrangularam a vontade popular, às vezes por vontade manifesta do próprio povo: são clássicos os casos de Hitler, na Alemanha, e Mussolini, na Itália. E de farsas eleitorais realizadas para mascarar ditaduras abjetas. O autor destas linhas acompanhou, pessoalmente, comícios do paraguaio Alfredo Stroessner, que sempre “disputou” seu poder em seguidas campanhas eleitorais das quais não admitia sair vitorioso com menos de 96% dos sufrágios. Após verificar ser impossível falar em eleição (aliás, escolha) num regime de partido único e de candidato único para cada vaga, cuja grande disputa é pela votação única (ou seja, que o eleitor não vote apenas em seu representante, mas nos 614, avalizando a farsa), Lula poderia cruzar os poucos quilômetros de mar até os Estados Unidos. E ali, no império execrado por Fidel e Chávez, testemunhar como se faz uma eleição de verdade para escolher o presidente constitucional de um país governado pela cidadania há mais de 200 anos. Enquanto os 614 candidatos de Fidel, ele entre todos, roem as unhas para saber se os 8,1 milhões de cubanos que foram às urnas domingo referendaram sua condição de membros da Assembléia Nacional, os dois maiores partidos americanos promovem suas eleições primárias para escolher os candidatos ao mais importante posto político da Terra. Quem não está habituado ao sistema de escolha do chefe do Poder Executivo na maior democracia do planeta pode até reclamar do método complicado para eleger os candidatos e, depois, o presidente. O sistema não é perfeito, pois a perfeição não está ao alcance do gênero humano. Mas em sua imperfeição é o que há de mais viável para fazer prevalecer a vontade do homem comum no comando da mais rica e poderosa máquina pública de hoje. Às vésperas de Fidel completar meio século no poder absoluto, se as limitações biológicas não o impedirem, Lula teria feito melhor se, em vez de somente visitá-lo, manifestasse o que o resto do mundo tem feito nesta quadra: alguma curiosidade sobre a escolha do futuro presidente da maior potência planetária. Pois não é toda hora que se pode assistir a uma disputa tão parelha nos dois partidos, num raro pleito de que não participam um presidente ou um vice, como é o caso deste. Para ele e para nós, seria mais útil que fotografar um amigo moribundo. José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde
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Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, janeiro 23, 2008
José Nêumanne Eleição é escolha, e não obediência
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