Temo que o título deste artigo transmita impressão apressada e incorreta de que escrevo sobre alguma nova dupla de intérpretes de moda de viola - coisa que escuto e aprecio desde a infância na beira do Rio São Francisco. Na verdade, é uma referência afetuosa a duas figuras especiais (um da política e outro da literatura), que escolhi para personagens da semana: o vice-presidente José Alencar e o escritor João Ubaldo Ribeiro.
O primeiro voltou a ser internado na última quinta-feira, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Passa por novas sessões de quimioterapia, parte do sempre delicado e doloroso processo de tratamento de um câncer de abdômen, mas que o bravo mineiro enfrenta com uma coragem, dignidade e bom-humor comoventes. Ele já passou por 10 cirurgias (seis para câncer) e ainda assim afirma que, em termos de operações, se sente "desmoralizado" diante da senadora Roseana Sarney.E o mais exemplar no vice-presidente: ele passa por tudo isso com altivez espantosa, sem perder o senso crítico, jamais.
O segundo, o escritor João Ubaldo, que festejou 67 anos de idade quarta-feira (23), em sua Ilha de Itaparica, com cabeça e língua mais afiadas que nunca. Ao espetáculo de rua promovido na cidade para o filho ilustre, compareceram - sob forma de bonecos ou em carne e osso -, personagens famosos dos livros do João baiano, entre eles o lagarto de duas cabeças, feliz "com a possibilidade de ser nomeado Ministro do Planejamento".
Uma hora antes de começar a festiva representação, o autor de "Viva o Povo Brasileiro" deu entrevistas e, com toda graça e malícia que é do seu jeito e temperamento, baixou o porrete verbal, sem medir cara ou tamanho. "Como é que o cidadão pode abrir um jornal hoje no Brasil e não ficar pelo menos nervoso?", questiona Ubaldo, na matéria publicada ontem na "Tribuna da Bahia", diário do qual ele foi brilhante editor-chefe durante anos.
Na longa matéria, seguida de contundente e deliciosa entrevista pingue-pongue publicada no "Correio da Bahia", a madeira cantou pra valer: Ubaldo ironiza a velhice, culpa a omissão do poder público pelo crescimento da violência nas pequenas e médias cidades do interior, malha a perda de identidade das ex-pacatas Itaparica e Salvador, e reserva as pauladas mais fortes para a cabeça do presidente Lula. Ah, o João baiano, que não é bobo nem nada, joga confetes e charme para cima das divas do carnaval Daniela Mercury, Margareth Menezes e Ivete Sangalo.
Profeta e visionário dos melhores em seus escritos, as palavras de João Ubaldo na celebração dos seus "67 abriles" (como dizem os argentinos), não sinalizam um futuro alegre e promissor, como o das paisagens vibrantes e coloridas de suas descrições dos finais de tarde na mutante ilha natal. O aniversariante lembra ter previsto há muito tempo um apagão, que ele enxerga cada dia mais próximo. Provavelmente de luz elétrica e de gás.
"Eu, que sou consumidor e torço pelo Brasil, não quero nada disso, mas estou vendo que vai acontecer, porque esse governo federal não fez nada pela infra-estrutura. Fez programas sociais, dando novo sentido à palavra social, um novo nome à Legião Brasileira de Assistência (LBA), e criando uma bomba-relógio que vai explodir mais cedo ou mais tarde", atira.
E sobre "as comemorações pífias" pelo bicentenário da chegada da família real portuguesa ao Brasil: "Lula nem sabe quem é Dom João VI. A única coisa que ele deve saber, além do que alguém o obrigou a ouvir, é a possibilidade de ter havido um Dom João V antes", completa o disparo no tutano do presidente.
Apesar de se confessar "meio zonzo" pela viagem feita às vésperas do aniversário, o João Ubaldo de bermuda, camisa e sandálias que vejo nas fotografias desta semana de 2008, não parece diferente da figura que entrevistei em 91, no mesmo lugar, para a revista "Veja", quando do lançamento de "O Sorriso do Lagarto".
Falta, é verdade, a mesa coalhada de garrafas de cerveja depois da conversa inesquecível, pois Ubaldo não bebe mais. Isso, no entanto, não tira nem de longe o fôlego, a agilidade e a qualidade do pensamento, o humor fervente e a força do látego das palavras que ele aplica no lombo dos donos do poder de hoje, como nos de antes.
O João baiano só titubeia, no final da entrevista, quando o jornalista do "Correio" lhe pergunta o que deseja receber como presente na data dos seus anos: "Não sei, não sei. Acho que outro aniversário", responde finalmente.
Mas isso é pouco. Peço de Salvador, como o povo de Itaparica reunido na praça e - estou certo - muita gente mais deste País e mundo afora, muitos aniversários mais para Ubaldo. "E que em data igual a esta, haja sempre a mesma festa", como pede a letra da canção de homenagem natalícia.
Mas termino com um vôo de volta para São Paulo, onde José Alencar trava neste fim-de-semana mais uma batalha heróica pela restauração da saúde. Sem perder a confiança, a força moral e o ânimo para, mesmo admitindo que "a coisa está preta", dar públicos e repetidos exemplos como político e como pessoa humana, em um País cada vez mais pobre de figuras públicas exemplares. Saúde para o bravo Zé mineiro, porque o resto ele tem de sobra.
Vitor Hugo Soares é jornalista. E-mail:vitors.h@ig.com.br