O Globo |
25/1/2008 |
O chanceler Celso Amorim chega hoje ao Fórum Econômico Mundial no pior momento possível para uma tentativa de retomar as negociações sobre o livre comércio. Todos os analistas reunidos aqui em Davos consideram bastante provável que a atual crise financeira que se alastra pelo mundo provocará nos Estados Unidos uma onda de protecionismo e um movimento antiglobalização que a futura administração a ser eleita em novembro, seja ela democrata ou republicana, será pressionada politicamente a aderir. A retomada da chamada Rodada de Doha, que será tentada aqui mais uma vez com reuniões dos representantes da União Européia e dos Estados Unidos com ministros do G-20, o grupo de países emergentes que luta pela redução dos subsídios agrícolas no âmbito da Organização Mundial do Comércio, depende fundamentalmente da situação política nos Estados Unidos, pois qualquer acordo que porventura vier a ser feito durante este ano, o último da gestão George W. Bush, precisará ser aprovado pelo Congresso, já que expirou em junho a autorização para que o governo negociasse acordos que não seriam passíveis de alterações pelo Congresso, o chamado "fast track" ("caminho rápido"). O caminho agora será necessariamente mais cheio de obstáculos políticos, a começar pelo ambiente, claramente contrário a medidas liberatórias no âmbito de uma economia em recessão ou crescendo muito lentamente. Ainda falta clareza para se saber se os Estados Unidos estão em uma recessão ou se a crise é mais profunda, com o perigo de uma depressão. O presidente Harry Truman tinha uma definição clássica: "É recessão quando seu vizinho perde o emprego, e é depressão quando você perde o emprego". O aumento do desemprego deverá ser a primeira conseqüência dessa desaceleração da economia, o que gerará uma tendência protecionista, contrária à globalização, reforçando a posição dos que entendem que os Estados Unidos estão exportando empregos com a terceirização de serviços para países como a Índia, por exemplo, que domina o mercado internacional de call centers. Uma legislação que limitasse as terceirizações, a pretexto de proteger os empregos americanos ( e talvez seguida pela União Européia) seria um forte baque na economia indiana. O grande risco para os Estados Unidos, porém, chama-se China e o que os economistas americanos classificam de "manipulação" do yuan, que estaria desvalorizado artificialmente. O superávit comercial da China só no ano passado aumentou U$500 bilhões, o que seria uma demonstração de que os produtos chineses, a preços baixos, estariam inundando os mercados mundiais numa "competição injusta". Esse sentimento de injustiça, exacerbado pelas dificuldades na economia americana que parecem mais profundas do que se previa, é o que pode fazer crescer uma latente animosidade contra os produtos chineses e acender uma guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, um cenário pessimista, mas não improvável, para os próximos anos. Uma legislação que de alguma maneira dificultasse a entrada de produtos chineses nos Estados Unidos, alegando exploração de mão de obra ou danos ao meio-ambiente, seria quase certamente revidada por uma retaliação chinesa, e esse é o pior cenário com que trabalharam os economistas em alguns painéis aqui em Davos. Esse mesmo sentimento de rejeição está começando a se revelar com relação aos fundos soberanos de países asiáticos, que estão ganhando relevância no mundo dos negócios globalizados, e recentemente tiveram papel de destaque na crise do Citibank. É o mesmo estado de espírito que havia nos anos 1990, quando o Japão começou a comprar ícones do capitalismo nos Estados Unidos, como o Rockefeller Center em Nova York. Os chineses, por enquanto, reagem com ironia e humildade nos debates aqui do Fórum Econômico Mundial. Cheng Siwei, um poderoso congressista chinês e respeitado especialista econômico, pediu que os americanos não culpassem a China pelo desequilíbrio da balança comercial: "Se vocês vendessem mais tecnologia para nós, a balança equilibraria", disse calmamente em um debate sobre a crise internacional. Ele parecia sinceramente preocupado com o crescimento de 11,5% do PIB chinês no ano passado, um dos maiores dos últimos anos. Garantiu que o governo tentou conter o crescimento da economia em patamares menores, e que este ano a economia chinesa crescerá "apenas" 8%. Para tranqüilizar os economistas que criticavam os produtos baratos chineses, Cheng Siwei garantiu que uma nova legislação trabalhista, e preocupações com a proteção social dos trabalhadores, estão entre as metas do governo, o que encarecerá os produtos "made in China", fazendo cair o saldo da balança comercial chinesa. A poupança interna na China chega à casa dos 50% do PIB, e ele avisou que o governo chinês vai "começar a encorajar os cidadãos a gastar mais seu dinheiro". Nesse clima de exacerbação dos sentimentos nacionalistas mais descolados, esses sim, do modelo de economia globalizada que está em vigor, é mais que improvável que se encontre algum espaço para um avanço na chamada Rodada de Doha. O ministro francês das Relações Exteriores, Bernard Kouchner, estava inspirado ontem pela manhã em Davos. Repetindo Guimarães Rosa, em "Grande sertão: veredas", ou então Virginia Woolf em "Mrs. Dalloway", disse que "a vida é arriscada" ("life is risky"). E deu uma definição nada poética e muito cética sobre ela: "A vida é uma doença letal sexualmente transmissível". |
Entrevista:O Estado inteligente
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