Hora de escancarar a porteira
O governo dá sinal verde para o loteamento
de cargos e cede ainda mais espaço ao PMDB
Marcelo Carneiro
Celso Junior/AE |
Reunião ministerial na última quarta-feira: aberta a temporada de liquidação de cargos |
VEJA TAMBÉM
|
Em 2003, o PT assumiu o poder proclamando-se mensageiro de uma nova era. Tendo passado toda a sua existência como pedra, e não vidraça, jactava-se de uma espécie de castidade que o faria diferente de "tudo isso que está aí". Tentou manter a pose mesmo quando, em setembro daquele ano, o governo promoveu um festival de nepotismo de magnitude jamais vista no país, ao instalar petistas e amigos de petistas em 15.000 dos 21.000 cargos de confiança disponíveis na administração federal. Da degola que varreu do mapa os ocupantes anteriores, não escaparam nem mesmo motoristas e ascensoristas. A isso, o PT deu o nome de "renovação". Em janeiro de 2004, não mais tão puro e casto assim, o governo petista abriu as portas para o PMDB pela primeira vez, cedendo as disputadas pastas das Comunicações e da Previdência Social a um partido historicamente conhecido pelo fisiologismo, pela flexibilidade de sua coluna vertebral e por uma densidade programática inversamente proporcional ao seu apetite por cargos. A isso, o PT deu o nome de "aliança político-programática". Cinco anos depois da primeira posse de Lula, os petistas perderam qualquer resquício de constrangimento em imitar práticas que antes criticavam e o PMDB só ampliou o seu espaço no governo. Hoje, o número de ministros peemedebistas triplicou e o partido já detém oito dos cinqüenta cargos mais "gastosos" (para ficar na expressão galhofeira do ex-deputado Roberto Jefferson) da administração federal – aqueles que exibem gordo orçamento e caneta com tinta suficiente para centenas de nomeações. O número se baseia em levantamento feito por VEJA em 2005 e que resultou no painel reproduzido nas páginas 54 e 55. Essa constatação – somada às cenas da última reunião ministerial, em que a única coisa que se discutiu foram as formas de cooptar o Congresso para aprovar projetos que atendam aos interesses eleitorais do governo – mostra que a administração Lula está passando por um franco processo de peemedebização. E isso, observada a origem da palavra, está longe de ser bom para o país.
Alianças partidárias são parte do jogo democrático. Ocorre que o PMDB é um partido cheio de peculiaridades – todas elas bem pouco abonadoras. Desde a sua fundação, ainda durante o regime militar, a legenda nunca primou pela coesão programática. "Sempre foi uma aglomeração de velhas e novas oligarquias, cuja única preocupação é capturar nacos do aparelho do estado para perpetuar sua força regional", diz o soció-logo Demétrio Magnoli. A lista do atual elenco peemedebista é auto-explicativa. No Pará, o dono do partido é o deputado federal Jader Barbalho. Em Alagoas, quem detém o comando da sigla é Renan Calheiros. Em Roraima, o manda-chuva chama-se Romero Jucá. Em São Paulo, o líder é Orestes Quércia. Todos esses políticos têm duas características em comum: serviram a vários governos e deixaram atrás de si denúncias de mau uso do dinheiro público. Barbalho (que acaba de conseguir a promessa de nomea- ção de um aliado para a presidência da Eletronorte – aliado esse que foi demitido do governo Itamar Franco por denúncias de corrupção e que, se nomeado, vai controlar um orçamento de 5,4 bilhões de reais) foi ministro da Previdência na gestão de José Sarney. Calheiros foi líder do governo Collor e ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. Jucá conseguiu a façanha de ser líder do governo do PSDB na administração FHC e agora ocupa a mesma função no governo Lula. Para não falar de Geddel Vieira Lima, novo cacique baiano e a face mais rechonchuda do fisiologismo peemedebista.
Fotos Alex Braga/Ag. Lumiar e Dida Sampaio/AE |
Geddel Vieira Lima: o ex-oposicionista agora é ministro da Integração Nacional e comandará a transposição do Rio São Francisco (à esq.), que exigirá a transposição de 4,5 bilhões de reais dos cofres públicos |
Foi assim, servindo a todos e servindo-se deles, que o PMDB se tornou o maior partido do país, sem nunca ter eleito um presidente da República pelo voto direto. O fato de a sigla, desde 1994, não apresentar candidato ao Palácio do Planalto não impede que mantenha uma fortíssima musculatura eleitoral, sobretudo nos grotões. Um em cada cinco prefeitos brasileiros é filiado ao PMDB. Na Câmara, o partido tem uma bancada maior que a do PT, com 92 dos 513 deputados. No Senado, seus vinte parlamentares representam 25% do plenário da Casa. É de olho nesse poder, traduzido, entre outras coisas, em votos no Congresso, que Lula escancara as portas para o PMDB – e fecha os olhos para a ética, a probidade e a boa governança.
Há outros fatores que justificam a aproximação do governo com a sigla. Para analistas, Lula – que se distancia do petismo para investir no "lulismo" – aposta em um projeto de longo prazo. "Nos planos do presidente, há espaço para uma aliança eleitoral com o PMDB, que pode ser implementada já a partir deste ano", diz o historiador Marco Antonio Villa. Os primeiros passos desse acordo começaram a ficar explícitos na semana passada, quando o Planalto deu sinal verde para que seus articuladores iniciassem conversações com a ala quercista do PMDB, a fim de formalizar uma candidatura em conjunto com o PT na disputa pela prefeitura de São Paulo. Uma vez consolidada a aliança no plano municipal, o passo seguinte seria a tentativa de dar forma a uma candidatura que unisse o PT e o PMDB na eleição presidencial de 2010. "Isso interessa a Lula porque, pela primeira vez, o PT não terá um nome forte para apresentar na disputa e, portanto, vai precisar da capilaridade do PMDB para penetrar em todas as regiões do Brasil", afirma Villa. A aproximação do governo com o PMDB é, portanto, ótima para as ambições do PT e melhor ainda para os planos de Lula. Quanto ao país, bem, isso é o de menos. A isso, dá-se o nome de desfaçatez.
Com reportagem de Naiara Magalhães e Victor De Martino
|