Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, janeiro 29, 2008

Míriam Leitão - Os duelos


PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
29/1/2008

Hoje é dia das primárias na Flórida, mas, para valer mesmo, só a disputa republicana. O estado foi punido pelo Comitê Nacional Democrata e seus delegados não estarão na convenção nacional, porque o comitê regional não acatou a data autorizada para as primárias. Só que 350 mil eleitores já votaram antecipadamente. Isso é mais que o triplo dos eleitores que participaram das primárias de 2004.

Isso mostra como o duelo democrata está mobilizando o eleitorado. O senador Barack Obama venceu a briga pelo voto negro na Carolina do Sul, avançou com quase um quarto do voto branco e fez um discurso arrebatador no sábado à noite, mas com uma contradição: diz que sua candidatura é de oposição ao status quo de Washington, mas se apresentou como um líder de uma grande coalizão de ricos e pobres, brancos e negros, democratas, independentes e até republicanos. Como a Carolina do Sul é um estado pequeno, Obama só ganhou mais oito delegados.

Cobrou-se de Obama o fato de ele nunca ter se apresentado como candidato negro. Os Clinton tentaram aproveitar isso. Lembraram as medidas tomadas ou defendidas pelo casal que beneficiaram a comunidade negra e até apresentaram Bill Clinton como o "primeiro presidente negro". Não funcionou na Carolina do Sul. Obama não pode ser apenas o candidato dos negros, porque eles são só 17% da população americana. Ele é o único que nem precisa se apresentar como negro: ele o é. Por isso, ampliou seu discurso. Obama diz que é candidato de uma coalizão que quer "mudar" e convoca todos para o mesmo guarda-chuva. É pouco específico nas propostas de mudanças e pouco afirmativo em qualquer questão controversa. Fala em mudança, mas não a define, e repete que reúne "a mais diversa coalizão que já vimos". Seu desafio é ser mais preciso, mantendo aberto o amplo guarda-chuva onde cabem todos. O sonho de mudança é que fez Caroline Kennedy dizer que ele é o candidato que mais se parece com seu pai. Seus trunfos são o inegável carisma e seu discurso vigoroso, que faz a fala de Hillary parecer burocrática. Obama usa as palavras para emocionar e arrebatar, mas não para esclarecer suas propostas de mudança do status quo.

As grandes vantagens de Hillary Clinton são o controle da máquina partidária, o apoio dos sindicatos e a experiência do marido. Isso é que estará em teste na próxima terça-feira, quando 24 grandes estados vão votar nas primárias. O marido está produzindo uma novidade na política dos EUA. Bill se definiu como um "pós-político". Normalmente ex-presidentes não entram no corpo-a-corpo da política eleitoral. Bill entrou porque ele é uma outra novidade: o primeiro candidato a first man da História americana.

Hillary embaraça tanto a sociedade machista quanto as feministas. Os conservadores a detestam por suas qualidades: nunca aceitou o papel tradicional da mulher do político, sempre teve voz e pensamento próprios, fez uma carreira profissional bem-sucedida, nunca representou perfeitamente o papel da first lady: a que fica sorridente ao lado do marido com a mão pronta para acenar e que nada tem a dizer sobre coisa alguma; figurino que coube tão bem em Laura Bush. Quando Bush assumiu, ela disse o que conversaria com o marido: "...about pets not politics" (sobre animais de estimação, não sobre política). No calor do debate na Carolina do Sul, Michelle Obama acusou Hillary de não ser boa "dona de casa". Vejam só! Ao mesmo tempo, Hillary constrói sua carreira política surfando no prestígio do marido e no peso do nome "Clinton", e fez o papel da mulher que perdoa a traição para salvar o casamento, bem ao agrado do pensamento tradicional.

Tanto Obama quanto Hillary cometeram erros nos últimos duelos. Obama disse que o presidente recente que mudou os Estados Unidos foi o republicano Ronald Reagan. Injusto com Clinton, que pegou o país em recessão e com déficit fiscal e o entregou crescendo e com as contas em ordem. Generoso com Reagan cujo reaganomics, cópia das idéias de Margaret Thatcher, concentrou renda e aumentou a desigualdade.

Hillary tocou no ícone intocável: Martin Luther King. Disse que o pastor fez o melhor discurso já feito na História americana, mas quem fez passar a lei no Congresso foi o presidente Lyndon Johnson. Mostrou desconhecer a força do movimento de massas para mover a História. Foram a marcha e o discurso de Luther King que deram ao presidente John Kennedy, e depois a Johnson, os argumentos para levar adiante a legislação dos direitos civis. Na verdade, Kennedy havia desaconselhado a marcha sobre Washington com medo de que isso assustasse o Congresso a quem ele encaminharia o projeto dos direitos civis. Diante da vitória retumbante da marcha, o presidente deu o braço a torcer e recebeu Luther King na Casa Branca repetindo o refrão: "I have a dream!" e aderindo inteiramente ao projeto que nasceu do movimento negro.

Obama é, de certa forma, fruto daquela marcha; Hillary é fruto das décadas de avanço das mulheres. Cada um representa um lado da modernização. Com qualquer um dos dois, o Partido Democrata está fazendo uma aposta ousada. Enquanto isso o GOP (Velho Grande Partido), como o Partido Republicano é conhecido, caminha com John McCain para o centro, tentando reencontrar o eleitorado.

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