Só a prevalência de uma anacrônica mentalidade nacionalista, indefensável nos tempos de globalização econômica, pode explicar a tentativa de um grupo dentro do governo de impedir a Vale de adquirir a mineradora anglo-suíça Xstrata, numa operação de valor estimado entre US$ 80 bilhões e US$ 90 bilhões. Esse nacionalismo ultrapassado pode até explicar, mas está longe de justificar a atitude do governo.
São frágeis, para não dizer insustentáveis, os argumentos que membros do governo invocam para barrar o negócio. A compra da Xstrata, se concretizada nos termos em que foi anunciada, não afetará em nada a participação, direta ou indireta, da União no capital votante da Vale - que se manteve depois da privatização da empresa. Alega-se que poderia ocorrer o que aconteceu na fusão da AmBev com a empresa belga Interbrew, da qual resultou a InBev, cujo comando ficou no exterior. A compra da Xstrata pela Vale não ameaçaria o controle, pelo Brasil, das decisões da empresa. E, se a mudança da sede da empresa vier a ser discutida, ela só se concretizará com a concordância do governo.
Como participante direto ou indireto no capital da Vale - por meio do Tesouro Nacional, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e dos fundos de pensão dos empregados de empresas públicas -, o governo teve oportunidade de manifestar sua oposição ao negócio na reunião do Conselho de Administração da empresa em que a operação foi discutida. Se o fez, não conseguiu a maioria dos votos, pois o Conselho de Administração autorizou a diretoria da empresa a negociar a compra da mineradora anglo-suíça, como informou Lázaro Brandão, presidente do Conselho de Administração do Bradesco, que tem participação na Vale.
A compra da Xstrata garantiria à Vale a liderança no ranking mundial das mineradoras. Hoje, a Vale tem valor de mercado estimado em US$ 130 bilhões, abaixo apenas da BHP Billiton, avaliada em cerca de US$ 170 bilhões. A Xstrata tem pouco mais da metade do valor de mercado da Vale.
A presença da empresa anglo-suíça é quase nula no Brasil, mas ela atua em 18 países, o que ajudaria a consolidar a estratégia de internacionalização da Vale. Com a compra, a Vale diversificaria ainda mais sua atuação. A diversificação começou com a compra da canadense Inco, então a segunda maior produtora mundial de níquel. Na Xstrata, a participação do minério de ferro é irrelevante. No ano passado, a empresa obteve 40% de sua receita com vendas de cobre, 22% com níquel, 17% com zinco e 12% com carvão. Ela é considerada a última mineradora de grande porte à venda.
Segundo se informa, parte do valor da compra deverá ser quitada pela Vale com a emissão de ações preferenciais. Pela legislação, a empresa poderá emitir até 3,5 bilhões dessas ações (atualmente, dos 4,8 bilhões de ações da Vale, 2,9 bilhões, ou 60,9%, são ordinárias, com direito a voto, e 1,9 bilhão, ou 39,1%, preferenciais, sem direito a voto). Se essa emissão for feita, haverá uma diluição da participação do governo no capital total, mas sua participação no capital votante será preservada, pois não haverá emissão de ações ordinárias.
Se entender que há mesmo a possibilidade de mudança do centro de decisões da Vale para fora do País, o governo pode utilizar os privilégios assegurados pela golden share, uma ação preferencial de classe especial. A golden share lhe assegura direitos de que nenhum outro acionista dispõe. Com ela o governo pode vetar a mudança da denominação social da Vale, a mudança da sede social, a mudança do objetivo social relativamente à exploração de jazidas minerais e a liquidação da empresa, entre outras propostas que vierem a ser discutidas pelo Conselho de Administração.
Mas a posse da golden share não lhe dá o poder de vetar a compra da Xstrata. Sua intervenção nessas discussões se dá por meio de pressões políticas, o que assusta os investidores. Essa intervenção mostra a incompreensão de certos setores do governo da realidade do mundo dos negócios em escala mundial - que a Vale, depois de privatizada, mostrou entender muito bem.