Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 04, 2007

O Sidney Sheldon afegão

No novo livro de Khaled Hosseini, duas mulheres
fortes enfrentam o marido malvado e o Talibã


Jerônimo Teixeira

Ninguém pensaria em atribuir algum potencial contestador a Titanic, a superprodução náutico-romântica de James Cameron. Mas em Cabul, durante o regime fundamentalista do Talibã – cuja idiotia ideológica e religiosa proibia diversões comezinhas como televisão, música e pipas –, até mesmo assistir a Titanic no videocassete de casa era um perigoso ato de transgressão. Ou pelo menos assim consta em A Cidade do Sol (tradução de Maria Helena Rouanet; Nova Fronteira; 368 páginas; 39,90 reais), novo romance do afegão (radicado nos Estados Unidos) Khaled Hosseini, autor de O Caçador de Pipas, sucesso mundial com mais de 8 milhões de livros vendidos. Com uma atenção exaustiva a esses detalhes cotidianos, Hosseini oferece um retrato palpável da vida no Afeganistão ao longo das últimas quatro décadas – um conturbado período que inclui a invasão soviética, guerras civis, o regime talibã e a ocupação americana. Despertada pelos eventos de 11 de setembro de 2001, a curiosidade ocidental pela realidade dos países islâmicos responde por parte do sucesso de Hosseini. Mas sua habilidade na construção de um melodrama envolvente também conta muito.

O Caçador de Pipas era uma história masculina, sobre a amizade acidentada entre dois garotos de Cabul. A Cidade do Sol é, ao contrário, uma espécie de Sidney Sheldon islâmico: um romance sobre mulheres sofredoras, amaldiçoadas pela sorte e humilhadas por homens maus, mas que no fim conseguem (ou, pelo menos, uma delas consegue) dar a volta por cima. Filha ilegítima de um empresário endinheirado de Herat, cidade próxima à fronteira com o Irã, Mariam é obrigada pela família do pai a se casar com o comerciante de sapatos Rashid, da capital, Cabul. O marido é um bruto, que antes mesmo do Talibã já obrigava a mulher a vestir a opressiva burca. A situação piora quando, depois de uma série de abortos, fica provado que Mariam jamais dará o sonhado herdeiro ao marido. Rashid passa a destratá-la e a espancá-la. Paralelamente ao drama de Mariam, Hosseini narra a história de Laila, a esperta filha de um casal de classe média de Cabul. Cerca de vinte anos mais nova do que Mariam, ela tem planos de se tornar uma mulher independente, de um dia estudar em uma universidade. Os sonhos de Laila são abreviados quando, aos 14 anos, sua casa é explodida por um foguete, em 1992, durante as guerras civis que dilaceraram o país. Seus pais morrem no bombardeio – e Laila ainda por cima está grávida do namorado adolescente, que se exilou com a família no Paquistão. Sem opções, ela acaba se tornando a segunda mulher de Rashid.

A amizade que surgirá entre essas duas mulheres é o centro do romance. Não, elas não ficam podres de ricas, como no típico livro de Sheldon. Hosseini ainda é mais realista do que o autor de O Outro Lado da Meia-Noite. O final de A Cidade do Sol, porém, é ensolarado, esperançoso. Sim, os antigos guerrilheiros tribais ainda dão as cartas na política afegã, e o Talibã segue ativo, seqüestrando e matando missionários coreanos. O último capítulo do romance reconhece esses problemas, mas aposta no futuro do país. Com irresistível ingenuidade, o renascimento do Afeganistão é representado nas cápsulas vazias de mísseis – sobras da guerra civil – que os habitantes de Cabul transformaram em vasos de flores. E no cinema que hoje pode exibir Titanic livremente.

Talibã x Titanic

"No verão, Cabul foi tomada pela febre do Titanic. As pessoas contrabandeavam cópias piratas do filme do Paquistão. Depois do toque de recolher, todos trancavam as casas, apagavam as luzes, baixavam ao máximo o volume das televisões e voltavam a chorar por Jack, Rose e os demais passageiros do navio que naufragou. (...) Vendedores desciam ao leito ressecado do rio Cabul. Em pouco tempo, era possível comprar ali tapetes e roupas Titanic, que enchiam carrinhos de mão. Havia desodorante Titanic, pasta de dentes Titanic, perfume Titanic e até uma burca Titanic."

Trecho de A Cidade do Sol

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