Paulo Ghiraldelli Jr.
Após certo silêncio, que eu acreditava prudente, Marilena Chauí voltou a falar. Não fez o gesto de Marco Aurélio Garcia, mas tentou usar de um discurso aparentemente sofisticado para, em resumo, ir pelo mesmo caminho. Fica difícil acreditar que a professora tenha dito o que disse. Todavia é o que está no blog de Paulo Henrique Amorim, chamado Conversa Afiada. Vejam um trecho significativo.
Paulo Henrique Amorim pergunta: “Em Leituras da Crise, a senhora discute a tentativa do impeachment do presidente na chamada ‘crise do mensalão’. A senhora vê sinais de uma nova tentativa de impeachment?”
Resposta da professora: “Sim. Como eu disse acima, a mídia e setores da oposição política ainda estão inconformados com a reeleição de Lula e farão durante o segundo mandato o que fizeram durante o primeiro, isto é, a tentativa contínua de um golpe de Estado.”
Como que é uma professora da nossa querida USP pode confundir impeachment e golpe de Estado? E qual a razão de ela querer repreender a oposição por ter quase tentado o impeachment no primeiro mandato de Lula, quando do episódio do “mensalão”? Por acaso a oposição e a imprensa deveriam ficar caladas e aceitar o que ocorreu? Ora, todos nós sabemos que a oposição até fez pouco! E quem está vendo militares rebelados, desafiando Lula e querendo que ele caia? E qual a razão por que alguns órgãos da mídia, que sabem que parte da responsabilidade pelo acidente do avião da TAM é do governo, ao usarem isso para criticar o governo, estariam comprometidos com golpe de Estado, e não com legítimo desempenho do jornalismo aguerrido?
Se Marilena Chauí não fosse professora de filosofia, eu não escreveria o que escrevo aqui. Eu deixaria passar. Mas é necessário que alguém que ama a filosofia (tanto quanto ela) coloque a filosofia ao lado da democracia. Não posso ficar quieto. Tenho de dizer três coisas simples, mas que todos sabem que é verdade.
Primeira: na democracia que vivemos, as pessoas que ficaram indignadas e feridas com o acidente da TAM têm o direito de reclamar, como estão fazendo, do governo, e a imprensa faz o serviço correto ao dar voz a tais pessoas, pois elas não teriam outro canal para reclamar senão o da imprensa. Diante do ocorrido, as pessoas afetadas direta ou indiretamente estão até muito conformadas.
Segunda: estamos numa democracia e as pessoas que reclamaram e puseram toda a culpa no governo podem estar erradas, mas elas não estão chamando militares para dar golpe de Estado em ninguém. Se algumas delas gritam “fora Lula”, talvez tenham aprendido isso com a atitude do PT, que por qualquer coisa escrevia em muros, sujando São Paulo, “fora Sarney”, “fora FHC”, etc. O PT ensinou as pessoas a serem mais agressivas e, talvez, até antidemocráticas, ensinou a vaiar presidente fora de hora (como no Pan), e algumas dessas pessoas aprenderam isso.
Terceira: é preferível, numa democracia, ter uma mídia exacerbadamente aguerrida contra o governo do que ter uma mídia subserviente, que escuta somente o poder, pois, afinal, baixar a cabeça para o governo é mais fácil e lhe daria vantagens, uma vez que as estatais gastam bastante com os meios de comunicação. Então, qualquer pessoa, principalmente o filósofo, quando vê uma imprensa contra um governo, deve agradecer o destino, pois o mais comum é ver a imprensa ceder às benesses do poder, que não poupa tentativas de cooptação.
O que quer Marilena Chauí? Ela quer que suas respostas cheguem ao curso de Paulo Henrique Amorim, na Casa do Saber, para convencer os ricos que votaram em Alckmin de que eles são todos golpistas? Ou ela quer fazer como Jânio Quadros e Brizola, que na base do puro populismo atacavam as redes de TV e os grandes jornais, colocando-se como vingadores do povo, e acusavam os meios de comunicação de serem só defensores dos magnatas?
Será que Marilena Chauí acredita mesmo que as liberdades que temos deveriam ser denominadas “liberdades burguesas” e, por causa desse qualificativo, deveriam ser substituídas por “liberdades populares”? Será que ela, entre quatro paredes, acredita que Chomsky e outros que são amigos de Hugo Chávez poderiam garantir a ela mesma, Chauí, liberdade para escrever seus longos livros, com salário pago por nós, num regime que levasse o nome de “República Popular”? Se ela acredita nisso, tenho o dever de lhe dizer o seguinte: você está enganada, professora.
O compromisso de Marilena Chauí com a chamada verdade é o seu compromisso com a chamada verdade do PT. Ela perdeu a autonomia como filósofa, pois acredita numa mágica, a saber, que a filosofia poderia continuar existindo numa situação em que a imprensa viesse a ver o que viu em Congonhas e ficasse quieta.
A filosofia perderia muito sem democracia. Nenhum de nós, filósofos de esquerda, pode querer levantar um dedo contra a imprensa por ela fazer gritaria contra o governo no episódio da queda do avião da TAM, pois os problemas do nosso caos aéreo são problemas do governo e, enfim, a queda do avião está entre esses problemas. Quem acredita no que Marilena Chauí acredita vai terminar por endossar a idéia de que o melhor lugar do mundo para se viver é aquele onde você ganha uma medalha em jogos internacionais e não pode recebê-la, tem de voltar para casa como cachorro com o rabinho entre as pernas. Não, filósofos de esquerda que são filósofos democratas não podem mais defender isso.
Há a possibilidade de amar a filosofia, ser de esquerda e, ao mesmo tempo, ser suficientemente democrata para ver com bons olhos a liberdade de imprensa - a completa liberdade de imprensa, sem quaisquer restrições. Vociferar contra a imprensa, evocando supostos conceitos filosóficos, me parece claramente uma tentativa de torcer as coisas. E isso não é o trabalho do autêntico filósofo.
Paulo Ghiraldelli Jr. é filósofo. Site: www.ghiraldelli.pro.br