Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 05, 2007

Fernando Henrique Cardoso

Simbolismo e liderança


A despeito das oscilações recentes do mercado financeiro, que ninguém sabe se serão soluços passageiros ou sinais de desarranjos mais profundos na economia mundial, é inquestionável que a prosperidade gerada pelo fim dos ajustes financeiros dos turbulentos anos 90 e, principalmente, pelo ingresso da China no mercado mundial favoreceu enormemente as economias emergentes.

Os países em desenvolvimento que já dispunham de alguma base industrial e foram capazes de ativar mecanismos públicos e privados de decisão estão se transformando, no embalo da economia mundial, a um ritmo impressionante. Nessa onda favorável, também o Brasil avança. Nossa economia só não começou a mostrar há mais tempo os resultados dos esforços que vinha fazendo desde o Plano Real e da mudança cambial de 1999 porque a crise energética de 2001 e os temores desencadeados pela perspectiva de uma guinada brusca com a eleição do governo petista comprometeram os resultados econômicos de 2002 e de 2003, os quais só apareceram com força depois de 2005.

Vivemos, portanto, um momento extremamente favorável para consolidar as reformas modernizadoras do governo, da sociedade e dos mercados iniciadas anteriormente. Um momento que requer visão de grandeza: abrem-se possibilidades para o Brasil se afirmar como uma grande nação. Isto é, como um país democrático, com uma economia tecnologicamente moderna e competitiva, respeitador das instituições e dos contratos, que ofereça condições universais de acesso à educação, à saúde, à terra e ao trabalho para que seu povo desfrute uma vida digna. Portanto, um país que não se conforme com manter uma parcela ponderável de seus habitantes sem emprego decente, requerendo assistencialismo governamental.

O esforço de arrancada na direção do futuro exige objetivos claros e persistência no caminho escolhido, requer coragem nas decisões e eficiência para implementá-las. Não deixa de ser preocupante que o PT tenha chegado ao poder no momento que mais exige tais qualidades. Por mais que o atual governo tenha dado continuidade às políticas macroeconômicas que herdou, das quais sempre foi crítico e - pasmem! - continua sendo, não soube fazer a revisão programática que lhe permitiria levar adiante um projeto verdadeiramente nacional. Um projeto que abrangesse todas as correntes da sociedade e transcendesse os interesses meramente partidários, corporativos e pessoais. Um projeto que avançasse nas reformas institucionais e permitisse uma colaboração verdadeira entre o Estado regulamentador e a iniciativa privada disposta a empreender, especialmente no campo da infra-estrutura. Um projeto verdadeiramente democrático, ao abrigo de recaídas populistas.

O presidente Lula só faz autocrítica indiretamente, sem assumir responsabilidade pelas decisões que toma. Apenas lamenta “a quantidade de coisas que eu falei e falava porque era moda falar, mas que não tinha substância para sustentar na hora em que você pega no concreto”. No exercício do governo, sempre que pode, refugia-se nas frases vagas, na cobrança genérica de responsabilidades, no jogar toda culpa no passado e se contenta com elogios fáceis a si mesmo, do tipo “nunca neste país”... Em parte a retórica presidencial é certa: nunca houve tantos escândalos e, o que é pior, nunca qualquer outro presidente passou tanto a mão na cabeça dos envolvidos (“não se comprovou nada, são aloprados, e não criminosos, errar é humano”).

De conseqüências ainda mais funestas do que a atitude leniente talvez seja a falta de compreensão histórica do governo e de seu líder. No afã de aumentar a popularidade e de iludir quem não tem acesso a melhor informação, governo e presidente assumem como próprio o que herdaram. Pouco importa, se for para o Brasil continuar avançando. Mas importa, sim, e muito, que estejam desperdiçando uma oportunidade histórica excepcional para que o Brasil dê um salto de qualidade, assegurando-o em benefício desta e das gerações futuras. Aqui, sim, cabe a frase: nunca neste país houve maior apagão ideológico e maior desídia diante do interesse público. O que vemos é um quadro de paralisia governamental, de desconexão, de imprevidência e de incompetência, recheada com uma retórica irresponsável.

Digo com lástima, sinceridade e franqueza: jamais imaginei que chegássemos a tal ponto de degradação. Fui testemunha da ação inovadora de Lula no sindicato e corajosa na política, quando ainda não era o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nunca o considerei, nem naquela época, um líder excepcional, pois lhe faltava firmeza para se contrapor à opinião da maioria ocasional, mas o tinha por um símbolo: migrante nordestino, corajoso e lutador que superou barreiras sociais. Tinha-o, e ainda o tenho, como um homem de boa índole, que em termos gerais deseja o bem do povo. Mas me decepciona vê-lo desperdiçar a oportunidade que tem nas mãos. Opus-me aos que, em 2005, cogitaram de propor o impeachment, não porque faltassem argumentos jurídicos nem porque quisesse vê-lo sangrar aos poucos, mas porque acreditava, como continuo acreditando, que o conteúdo simbólico de sua liderança é um patrimônio do País que não deve ser destruído. Lamento vê-lo agora destruir por suas próprias palavras e atos o capital de credibilidade que conquistou.

Presidente: em nome da sua e da História de nosso país, não se rebaixe à vulgaridade em nome da popularidade, resguarde-se de dizer tantos impropérios que machucam o bom senso, a solidariedade e a democracia. Por favor, tenha um pouco mais de grandeza, de que tanto necessitamos!


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