Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 16, 2007

Míriam Leitão - O risco do dano

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PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
16/8/2007

Há dois riscos na atual turbulência no mercado internacional: que ela se propague em contágios sucessivos e se torne uma crise de crédito; que não aconteça absolutamente nada graças ao socorro superlativo dos bancos centrais. No primeiro risco, o mundo pode entrar numa recessão; no segundo, o mercado financeiro confirmaria que não há punição para os desatinos, e os repetiria.

É desatino emprestar para quem não pode pagar; é desatino oferecer a ele um crédito maior para rolar a dívida antiga com uma sobra para novas compras; é desatino das agências de risco distribuírem o grau máximo de confiança a produtos financeiros derivados desses empréstimos a pessoas com baixa capacidade de pagamento da dívida. Mas o mercado financeiro global fez tudo isso.

O primeiro risco é tão grande que, claro, é preferível o segundo: o risco do dano moral, na difícil tradução do inglês moral hazard. Neste cenário, o problema é a repetição da insensatez para a qual tantos do mercado contribuíram. Os devedores duvidosos, com renda incerta ou históricos de inadimplência, eram incentivados pelos bancos e empresas financiadoras de hipotecas a tomar crédito. Quando não pagavam, eram incentivados por eles a rolar o empréstimo num valor maior e ainda ter uma parte do dinheiro cash para novas compras. Num país em que o consumidor paga um cartão de crédito com outro cartão de crédito e vai rolando a dívida, nada de mal em ter um novo empréstimo maior se o ativo, a casa, que o garantia, também subia de valor. O consumidor/devedor podia confundir tudo e achar que estava mais rico, quando estava apenas ficando mais endividado. Os bancos e financeiras, especialistas no mercado de crédito, é que deviam ter atitudes prudenciais; mas não tiveram.

Foram imprudentes também os agentes do mercado que securitizaram essas dividas, transformaram os papéis derivados dela em produtos financeiros atraindo os investidores com as taxas mais altas pagas por estes papéis e os espalharam pelo mundo.

Mas as empresas de rating que classificaram esses produtos financeiros num menor nível de risco, no nível recomendado como bom investimento, precisam urgentemente dar uma explicação ao mercado. Elas erraram na Ásia: os países que quebraram na década de 90, ainda que tivessem as fragilidades que acabaram levando-os à crise, eram considerados investment grade. Erraram também quanto às empresas que quebraram na crise das fraudes no balanço, como a Enron e a WorldCom. E agora são apanhadas, de novo, avaliando de forma completamente equivocada os ativos financeiros derivados dos títulos subprime.

Em 2000, conta o "Wall Street Journal", a Standard & Poor"s tomou a decisão de mudar a forma como avaliava um tipo específico de empréstimo, que se tratava de receber um novo empréstimo para pagar o anterior. Ao não considerá-lo como embutindo um risco grande de calote, a S&P, com as outras agências, deram combustível para que o mercado de subprime, e de hipotecas em geral, desse o salto que deu, transformando-se num bolo de US$1,1 trilhão. "S&P, Moody"s e Fitch Ratings deram as melhores classificações para muitos papéis feitos a partir de empréstimos duvidosos, fazendo assim com que as seguradoras achassem que eles eram tão garantidos quanto os títulos do Tesouro americano", diz o artigo.

A decisão tardia de rebaixá-los foi apenas a tranca na casa arrombada. Como foi feita somente depois de a derrocada no mercado de hipotecas já ter começado, ela acaba produzindo - como ocorreu das outras vezes - um aumento no combustível da crise, por incentivar a desconfiança.

Contratadas para serem um olho a mais, um ponto crítico capaz de ver riscos que não são percebidos pelo mercado, as agências de risco têm incentivado bolhas, constatado quebras só depois que elas acontecem, e precipitado crises, ao rebaixarem indiscriminadamente, nos momentos de agravamento dos problemas, para tentar salvar a própria reputação.

O maior dos culpados pela crise, no entanto, são os emprestadores lenientes com os riscos do tomador. Os bancos e fundos que não foram transparentes com seus investidores. As empresas de hipotecas que incentivaram a ciranda das compras descontroladas dos consumidores americanos. Ontem, a Merrill Lynch divulgou uma orientação de venda para as ações da Countrywide, a maior financiadora de hipotecas dos Estados Unidos, que vinha aumentando sua exposição ao risco, mesmo quando os sinais dos problemas já estavam ficando claros com as dificuldades das empresas menores. A Countrywide achou que cresceria com a crise, mas tem dado nos últimos dias vários tropeços. Como é financiada por bancos de vários países, se ela quebrar, vai provocar um enorme estrago.

O Brasil não é alvo nesta crise como já foi em outras, porém, quando o furacão é grande, todos sacodem. Como estamos no mesmo mundo das finanças globalizadas, é torcer para que a tormenta passe. Mas, se ela passar pela ação curativa dos bancos centrais, o risco é que fique a sensação de que nem houve crise, e os negócios imprudentes recomecem no dia seguinte.

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