Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 09, 2007

Míriam Leitão - Desafios futuros



PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
9/8/2007

Para quem viu as recessões e crises externas da América Latina nos anos 80, é animador conferir as projeções de crescimento econômico deste ano na região. Para países que sofreram tanto com a inflação, é assustador ver como alguns têm sido lenientes com o tema. Mas o mais espantoso é como a América Latina negligencia a agenda do século XXI.

Esta viagem do presidente Lula a mais um grupo de países da região ocorre num momento em que a maioria deles está com previsão de forte crescimento. O México deve crescer abaixo de 4% este ano, mas é um dos poucos da região.

Uma visão mais ampla da América Latina mostra que os países crescem, mas alguns, como Argentina e Venezuela, toleram taxas perigosas de inflação, numa região que já foi devastada pela hiperinflação.

Baixo crescimento e inflação alta foram os dilemas que infelicitaram duas décadas da América Latina.

Não apenas não resolvemos definitivamente velhos problemas, como estamos ignorando todas as ameaças, chances e riscos do século XXI. A mudança climática nos ameaça em três flancos: o derretimento dos Andes, a destruição da Amazônia e os reflexos do degelo da Antártica no Cone Sul.

Enfrentar as ameaças comuns deveria ser uma razão de união. A Amazônia é compartilhada por nove países, ainda que 62% da floresta fiquem em território brasileiro. Ela pode agravar o aquecimento global ao ser destruída no ritmo em que tem sido; e pode ser vítima do fenômeno, mesmo que seja preservada. A Amazônia tem impacto na regulação do clima até no Hemisfério Norte, e é depositária de um banco genético de uma diversidade ainda não conhecida. Por tudo isso, esse deveria ser o tema mais recorrente nas reuniões entre os países amazônicos; e esses encontros deveriam ser rotina.

A única proposta feita recentemente foi aquela idéia da Venezuela - felizmente hoje em banho-maria - de construir um gasoduto que atravessaria a Amazônia para garantir mercado para seu gás. O Brasil está fazendo duas hidrelétricas no Rio Madeira, uma bem perto da Bolívia. Mas não quer nem ouvir o que, porventura, os bolivianos têm a dizer a respeito de um rio que tem várias complexidades: dos sedimentos que talvez fiquem mais intensos com o derretimento dos Andes, da riqueza da produção de peixes. A Colômbia vê a floresta como obstáculo à sua política de combate às guerrilhas. O Brasil já foi capaz de se mobilizar para defender sojeiros brasileiros plantando na Amazônia boliviana. A Floresta, que deveria unir, é ponto de desunião.

O degelo dos Andes não pode ser revertido, mas é preciso que os países se preparem para isso com informação sobre a evolução provável, sobre os eventos possíveis e com ações de fortalecimento da defesa civil. Os cientistas falam em dois tipos de eventos, aparentemente contraditórios, que podem atingir a sub-região: grandes enchentes e falta de água potável.

O Sul também precisa se preparar para os eventos na Antártica em desenhos institucionais que fossem além do Mercosul. Haverá, dizem cientistas, mudanças nos regimes das frentes frias: os invernos serão mais curtos e mais intensos.

A região tem uma população ainda jovem: 315 milhões dos 568 milhões de habitantes têm menos de 30 anos; 162 milhões têm até 14 anos. Tem uma vasta pobreza, que chega, em países como a Bolívia, a ser de 32% da população em extrema pobreza. Alguns índices educacionais mostram que milhões de jovens estão ainda aprisionados no analfabetismo, que é de 11% no Brasil e na Bolívia.

Garantir o crescimento sem correr o risco de inflação, educar a população, combater fortemente a pobreza, preparar-se para defender os ativos ambientais comuns e se proteger dos efeitos já inevitáveis do aquecimento global deveriam estar numa agenda da região que olhasse para frente. Mas, por aqui, Kirchner reprisa o populismo do controle de preços e tarifas, que levou o país a uma crise de energia. Chávez enverga o embolorado uniforme do ditador latino-americano. Evo Morales e Rafael Correa fustigam investidores internacionais, entre eles, empresas de países da própria região, como as brasileiras.

A energia, que deveria unir, também desune. O gás de Bolívia e Venezuela; o petróleo de Venezuela, Equador e México; as águas compartilhadas por Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina; a dianteira tecnológica do etanol brasileiro deveriam ser vistos como ativos do continente para um mundo onde a energia será cada vez mais escassa e mais cara.

A Venezuela vê no petróleo arma para aumentar a influência na região; a Bolívia fustigou frontalmente a Petrobras, o maior investidor no país, a empresa que já havia uma vez quadruplicado suas reservas e certamente continuaria fazendo novas descobertas. O Equador ensaia os mesmos passos de confronto com o investidor-consumidor, que levará o capital para mais longe e o consumidor para outras fontes. Brasil e Paraguai viverão um ano tenso em 2008, com as disputas em torno de Itaipu levadas para o palanque da eleição presidencial lá. Todos juntos combatem o biocombustível brasileiro usando o argumento fóssil-castrista.

Pobre América Latina: tão prisioneira dos anos 50 do século passado, tão longe ainda do século XXI.

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