Ser pai
Eis um assunto que aparece pouco nas manifestações culturais. Há uma infinidade de filmes, livros e canções sobre ser mãe, e a quantidade de pinturas Madonna con Bambino expostas nos museus não dá para medir. Também são muitas as histórias do ponto de vista dos filhos, em geral revoltados contra os pais, com quem se confrontam e depois, às vezes, se confortam - como na Carta ao Pai, de Kafka, ou em Quase Memória, de Cony. Há também muitas sobre ser irmão. Mas raras dão atenção à paternidade, às dúvidas e delícias do ponto de vista do pai, e não me refiro a histórias de filhos doentes. É sempre como se a relação maternal fosse mais intensa e, bem, umbilical. Pode até ser. Mas eu, como pai, neste Dia dos Pais, não posso deixar de apontar o fato de que somos injustamente relegados a segundo plano.
Claro que há exceções, como o clássico Pais e Filhos, de Turgueniev, mas não pretendo listá-las aqui. Cito apenas um livro e um filme de safra recente: A Invenção da Solidão, talvez o melhor livro de Paul Auster, em que na primeira parte narra memórias de seu pai e na segunda trata de sua própria experiência como pai, com admirável sensibilidade; e o filme O Quarto do Filho, de Nani Moretti, sobre como só nos damos conta do tempo perdido quando ele já passou. E é claro que não estou falando de livros de auto-ajuda ou programas de humor na TV, estes sim em alta. O que me espanta é que uma experiência tão profunda seja tão pouco examinada por grandes autores.
Mais: o assunto não poderia ser mais atual, tais as transformações que a sociedade vive nesse aspecto; decididamente, ser pai hoje não é como era há 50 ou 20 anos. O papel da autoridade, dono da última palavra, que argumenta apenas até o momento em que precisa aludir ou recorrer à força física, felizmente já era. Não que a complacente auto-imagem do pai ''''amigão'''', à mercê dos caprichos filiais, seja boa substituição. Mas tal mudança não merece mais atenção? Isso para não falar que muitos pais ainda são ausentes, como se vê tanto nas ruas do Brasil, sempre as crianças de mãos dadas com as mães...
Intelectualóides adoram citar a frase final de Brás Cubas, ''''não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria'''', inconscientes de que Machado de Assis - que queria ter filhos, mas provavelmente não podia por causa de doenças - estava ironizando a megalomania de um sujeito que não realizou nenhum sonho antes de morrer e precisa se justificar. Confesso que na juventude eu pensava que minha vontade de correr mundo era incompatível com a paternidade. E sempre ouvi que ao ser pai, o que já sou há dez anos, sentiria ''''o peso da responsabilidade''''. Mas, talvez por já ser responsável, não senti nada disso, independentemente das caras mensalidades escolares que viriam e das incontáveis vezes em que abri mão de um prazer ou viagem.
O viver é que se enriqueceu, inclusive de obrigações - e dilemas como os deste mês de agosto, em que tenho de escolher a nova escola dos três filhos -, e também a certeza de que esse é o tipo de experiência intransferível. Respeito a decisão de muitos de não ter filhos, principalmente quando bem resolvida. Mas eles não podem negar que não sabem o que é. Não se trata de ver a si mesmo com descendentes, ''''perpetuado'''', nem de satisfação por ter cumprido a função social de ''''montar família''''; também não acho que seja o ''''amor incondicional'''' que se sente como nem pela mulher de sua vida. Nada disso.
É o aprendizado. É a percepção de formas nem sempre verbais e conscientes de comunicação e afeto. É a observação de que um filho pode ser tão diferente do outro, nesse jogo complexo entre o herdado, o inato e o adquirido. É a confirmação dos ditos populares antigos como ''''pai é quem cria'''' e ''''filho se educa pelo exemplo'''', mais fáceis de dizer do que fazer. É a lição de que, antes da vaidade, da auto-afirmação moral, existe uma criatura aberta a tudo, curiosa por tudo, absorvendo tudo por modos muitas vezes surpreendentes, tão espontâneos quanto sofisticados. É a chance de se reconectar com a própria infância. Ser pai é redescobrir como é grande o mundo.
A ARTE DE EXPOR
Já está no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo a mostra Aleijadinho e Seu Tempo, com mais de 200 obras, entre esculturas, mapas, objetos e maquetes. Há muitas coisas bonitas, e não só de Aleijadinho. O Brasil criou um mito fundador em torno da figura de Aleijadinho, artista mestiço algo ''''maldito'''' que teria inaugurado a cultura brasileira em sua essência barroca. Mas foi, claro, um mito criado ''''a posteriori'''', mais de um século depois, com motivações ideológicas ou inspirações pontuais, não exatamente por ter gerado uma linhagem decorrente de sua obra. (Muito da arte brasileira não cabe no rótulo barroco; basta pensar em João Cabral ou João Gilberto.) A mostra comprova que Aleijadinho pertencia, como dizem os sociólogos, a um sistema de produção, dentro do barroco lusitano tardio, filho de artesão português que era.
No mesmo movimento, a mostra comprova que sua obra é uma exceção, pairando acima das outras por sua originalidade - técnica, no modo como usava materiais como a pedra-sabão e a madeira policromada, e dramática, na intensidade que deu aos rostos e gestos. Além disso, foi arquiteto tão grandioso quanto foi escultor; São Francisco de Assis é uma igreja única, um arranjo muito harmônico entre linhas, curvas e volumes. E pensar que ele criou isso numa cidade cheia de contradições, num surto de garimpos e igrejas, na mesma época em que um grupo de intelectuais e militares se revoltou contra os impostos coloniais, propagando iluminismo à americana e defendendo uma arte neoclássica... Vila Rica entre o profano e o sacro, o barroco e o árcade, o local e o internacional - eis um tema ainda por ser esgotado.
NÓS, ANIMAIS
Quando escrevi sobre a diferença entre a espécie humana e os outros animais, na semana retrasada, ainda não tinha visto esse ótimo Ratatouille, filme da Pixar, que defende a mesma tese de que nossa distinção está em comer alimentos depois de temperá-los e cozinhá-los, o que cria uma variedade infinita de combinações. E sobre o trabalho de Frans de Waal, autor de Eu, Primata, há na revista The New Yorker de 30/7 uma longa matéria de Ian Parker sobre como os bonobos não são primatas assim tão bonzinhos, opostos à agressividade dos chimpanzés. Outro primatologista, Gottfried Hohmann, diz que De Waal estudou apenas bonobos em cativeiro. A controvérsia deve se estender, mas o melhor do livro é a maneira como De Waal chama atenção para comportamentos de empatia e cooperação que antes não eram comparados com os humanos.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
É uma noção típica de países subdesenvolvidos essa de que a mídia deve ser uma porta-voz ou uma caixa de ressonância da maioria da população. O engraçado também é como falam da ''''mídia'''' como se fosse uma coisa só, devotada por conspiração ''''elitista'''' a distorcer os fatos, e como se não tivesse muitos simpatizantes dentro dela. (Alguns, a propósito, até tinham rompido com o governo, mas agora já estão readaptando seu discurso; afinal, existe preconceito contra Lula por ter sido pobre.) Na cabeça deles, muitos dos quais são professores em faculdades, a lógica é a seguinte: se o governo Lula tem aprovação de mais de 50% da população, então a mídia deve igualmente apoiá-lo. Primeiro, misturam aprovação em pesquisa com realidade socioeconômica e esquecem que Lula anuncia quase todo dia seus feitos e projetos nos jornais, como não acontece em nenhum país sério. Segundo, e pior, querem as empresas privadas de comunicação a serviço do poder público. Anos atrás, diziam que jornalismo é contestação. Agora que o poder mudou de dono...
Por falar nisso, o que aconteceu entre a deserção dos boxeadores cubanos durante o Pan e a extradição deles de volta para Cuba, ao que parece (escrevo na quinta-feira), permanecerá um mistério. A que se deve o modo veloz e obscuro com que o governo brasileiro os despachou? El Comandante llamó?
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
As denúncias que pesam sobre o deputado Mauro Bragato, do PSDB, são sérias, como revelou este jornal. Ele é acusado de ter recebido propina de R$ 100 mil da máfia da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), cujos recursos eram desviados por uma empreiteira, FT Construções, num esquema muito parecido com o das Gautamas da vida. Como aponta também o caso Renan, a relação entre políticos e empresas que fazem obras públicas é o grande ralo de corrupção do Brasil, contra o qual pouco se faz, mesmo que Tribunais de Contas e Ministérios Públicos não cansem de apurar. Se fosse um escândalo de governo petista, críticos estariam atacando o ''''aparelhamento stalinista'''' da CDHU. Sim, o ''''modus operandi'''' petista tem suas peculiaridades e ironias. Mas a confusão entre máquina pública e aparelho partidário é tão velha quanto o Brasil.