Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 07, 2006

VEJA Entrevista: Al Gore

Entrevista: Al Gore
O guru do verde

O ex-vice-presidente dos EUA quer
mostrar que investir na ecologia é bom
negócio e também ótima bandeira política


Gabriela Carelli

Mark Mainz/Getty Images

"Investir no meio ambiente dá lucro e é excelente para o planeta. Os políticos estão começando a perceber isso"

Afastado dos cargos públicos desde que perdeu a disputa pela Casa Branca para George W. Bush, seis anos atrás, o ex-vice-presidente Al Gore converteu-se num inflamado pregador da salvação do planeta por meio do desenvolvimento de novas tecnologias e da adoção de atitudes contra a poluição. Seu documentário Aquecimento Global: uma Verdade Inconveniente, baseado nas mais de 1.000 palestras que proferiu sobre os riscos das mudanças climáticas, foi a estréia de maior repercussão no Festival de Cannes, em maio. Filho de um senador, ele preocupa-se com questões ambientais desde o início de sua carreira política, em 1976. Há dois anos, para provar que investir no verde é bom negócio, Gore abriu com sócios um fundo de investimentos que administra 200 milhões de dólares aplicados na produção de energia sustentável. Também comprou um canal de TV a cabo especializado em assuntos ambientais. Aos 58 anos, Al Gore vem ao Brasil na próxima semana a convite da Câmara Americana de Comércio para a cerimônia do Prêmio Eco 2006. Da Califórnia, ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Veja – Qual a importância da Amazônia na prevenção do aquecimento global?
Gore – Há dois pontos principais a considerar a respeito da Amazônia. Primeiro, a ação humana fez com que as florestas, aspiradores naturais do gás carbônico, se tornassem grandes emissores desse poluente. A cada ano, 10 trilhões de toneladas de CO2 são lançadas na atmosfera e, desse total, 2,5 trilhões são produzidas pelas queimadas. Não sei precisar a contribuição exata do desmatamento da Amazônia para toda essa poluição. Os brasileiros precisam agir com urgência para frear o ritmo das queimadas. Estamos vivendo uma crise global e todos precisam participar do esforço de reduzir a emissão de gás carbônico. O segundo ponto é que, ao devastarmos as florestas tropicais, não apenas afetamos o clima e a biodiversidade, mas também perdemos as riquezas naturais contidas nessas matas. Acredito que, do ponto de vista brasileiro, faz sentido preservar a floresta para o bem – inclusive econômico – do Brasil. As espécies vegetais, a maioria delas ainda desconhecida da ciência, valem milhares de centenas de vezes mais do que a agricultura de subsistência ou a lavoura de soja que estão substituindo a floresta.

Veja – Muitos brasileiros temem que a pretexto de garantir a preservação da floresta surjam propostas de internacionalizar a Amazônia. O senhor acredita que isso seja possível?
Gore – O que acontece no Brasil deve ser uma decisão soberana do povo brasileiro. Não pode ser uma decisão internacional ou de outro país. O tema da participação estrangeira na preservação da Amazônia já causou muitos desentendimentos. É perfeitamente possível para uma nação tão grande quanto o Brasil descobrir e garantir a riqueza existente na Amazônia e usar esse conhecimento de forma bem-intencionada.

Veja – O que os outros países podem fazer para ajudar?
Gore – Uma coisa que os Estados Unidos poderiam fazer para ajudar o Brasil seria remover as altas taxas sobre a cana-de-açúcar e o álcool combustível. Isso sim ajudaria o Brasil.

Veja – O senhor acha que a experiência brasileira no uso de álcool combustível pode ser reproduzida em escala global?
Gore – O álcool é o substituto mais importante que temos hoje para os combustíveis fósseis. Acredito que seja uma solução concreta para a ameaça de aquecimento da Terra. É claro que há limites para a produção de álcool na enorme escala necessária para substituir totalmente a gasolina, mas já estão sendo desenvolvidas técnicas para resolver esse problema. São tecnologias que, no futuro, poderão produzir álcool pela metade do preço do petróleo. O mais importante é que permitirão produzir o combustível com raízes, bagaços e folhas de plantas, evitando que alimentos sejam usados para esse fim. Se conseguirmos avançar nesse ponto, não haverá mais a competição comida versus combustível.

Veja – Já é possível imaginar um mundo que não dependa do petróleo?
Gore – O Brasil não só inovou no desenvolvimento desse combustível alternativo como se tornou líder mundial dessa indústria. O país pode ensinar o resto do mundo a ter um melhor entendimento na solução de problemas relacionados aos combustíveis fósseis. Prova disso é o sucesso dos carros flex. Esses veículos mostram aos demais países que há alternativas viáveis e que não é necessário mendigar a misericórdia dos países do Oriente Médio e da Venezuela.

Veja – Pelo que o senhor diz, a ecologia pode ser um ótimo negócio.
Gore – É um excelente negócio tanto para a economia quanto para o meio ambiente. A Toyota só tem lucros com seu carro híbrido. Já os fabricantes tradicionais só têm prejuízos. A General Electric decidiu recentemente tornar-se uma empresa engajada na preservação ambiental e está ganhando muito dinheiro nesse processo. O mesmo faz a DuPont, a gigante da indústria química. Empresas gigantes não entram em negócios para perder dinheiro.

Veja – O senhor tem negócios ligados à ecologia, não é?
Gore – Tenho dois. Um canal de televisão dedicado à divulgação de assuntos ambientais e um fundo de investimentos para novas tecnologias. Ambos vão muito bem, obrigado. Essas iniciativas são do tipo que chamamos de carbon-free, ou seja, não emitem CO2 e usam energias alternativas. Em outras palavras, não poluem. Estou tendo muito lucro, sim. Não vejo problema nenhum nisso. Espero que as pessoas percebam que todos podem lucrar – ambiental e economicamente – se agirem como eu.

Veja – Em seu documentário sobre o aquecimento global, o senhor pinta um quadro assustador da situação ambiental do planeta. No fim, muda o tom e diz que basta mudarmos nosso estilo de vida para reverter tudo. Não é muito otimismo?
Gore – Certamente não é tão fácil assim. As recomendações mostradas no fim do filme sobre o que cada indivíduo pode fazer para melhorar a vida na Terra são importantes, mas sozinhas não resolvem a crise. As pessoas devem se organizar para pressionar por mudanças nas políticas públicas. Cada pessoa que adota um estilo de vida ecológico encoraja o governo a tomar decisões a favor da preservação ambiental. Isso ocorre na Califórnia e em outros estados americanos que vão em direção contrária à política ambientalista de Washington, que rejeitou o Tratado de Kioto.

Veja – Muitos cientistas acham que já é tarde demais para evitar o desastre. James Lovelock, o criador da Hipótese Gaia, sustenta que as mudanças climáticas eliminarão 80% da população mundial até o fim do século.
Gore – Lovelock, por quem tenho imenso respeito, é muito pessimista e erra em presumir que o ser humano é incapaz de mudar seu comportamento. Sei algo sobre política que ele não sabe. Os políticos são em geral muito lentos, e isso se reflete na condução do governo e na tomada de decisões. Por outro lado, eles podem agir com muita rapidez se pressionados pelos eleitores. Foi assim quando os Estados Unidos tomaram a decisão de enviar um homem à Lua e fizeram isso em menos de dez anos. O mesmo aconteceu quando os aliados reagiram ao fascismo. Em 1940, a idéia de montar 1 000 aviões de guerra por ano era considerada insana. Em 1943, esse número estava muito abaixo da capacidade industrial.

Veja – Dez anos não é um tempo curto demais para mudanças capazes de afetar o clima em escala global?
Gore – Não precisamos fazer tudo em dez anos. De qualquer forma, seria impossível. A questão é outra. De acordo com muitos cientistas, se nada for feito, em dez anos já não teremos mais como reverter o processo de degradação da Terra. Os estudos mostram que é necessário iniciar imediatamente uma forte redução na emissão de gases poluentes. O primeiro objetivo seria estabilizar a quantidade de poluentes na atmosfera. E então, quem sabe, depois de cinco anos, começar a reduzir o montante de CO2 no planeta.

Veja – O senhor já começou a mudar seu estilo de vida?
Gore – Há dois anos decidi viver uma vida sem carbono. Tudo o que eu e minha família fazemos visa a emitir a menor quantidade possível de gás carbônico. Temos carros híbridos, usamos energia verde, evitamos água quente, desligamos nossos aparelhos elétricos quando eles não estão sendo usados. Claro que ainda pego aviões comerciais e vou tomar um para ir ao Brasil. Mas a minha emissão pessoal de carbono nas viagens é compensada com a divulgação que faço do tema.

Veja – Qual é a maior ameaça ao planeta atualmente?
Gore – Não vejo só uma ameaça, mas uma combinação de fatores. A superpopulação é um deles. Daí a necessidade de tecnologias que evitem o uso de alimentos como fonte de energia. O mundo não pode suportar por muito tempo o crescimento do consumo no ritmo atual. O número de pessoas quadruplicou nos últimos 100 anos. Isso é muita gente. A boa notícia é que o tamanho das famílias nos países onde há educação para o povo, justamente aqueles que consomem mais, está diminuindo de forma jamais imaginada. O importante é evitarmos aquilo que Jared Diamond mostrou em seu livro Colapso. Ou seja, civilizações que se autodestroem em nome do progresso.

Veja – A escassez de água potável é um problema cada vez mais grave. Um dia a água valerá mais do que o petróleo?
Gore – Em poucos anos a água será um problema sério em muitos países. Isso devido tanto ao aumento da população quanto às estratégias ignorantes de determinados países em relação a esse bem. Não tenho dúvidas de que a água será uma commodity preciosa. Na minha opinião, ela já vale mais do que o petróleo. Note que uma garrafa de água mineral custa mais do que o equivalente em gasolina. E não estou falando de águas de marcas famosas, como San Pellegrino.

Veja – O senhor considera a energia nuclear uma boa alternativa ao consumo de combustíveis fósseis?
Gore – Não acredito nessa opção. É possível que ocorra um aumento no uso de energia nuclear, mas creio que será mínimo. Trata-se de uma opção complicada por duas razões. A primeira é o alto custo. Essa ainda é uma tecnologia muito cara. A segunda, e mais importante, é que a energia nuclear é sempre um risco. Ao se permitir o seu uso, aumenta bastante o risco de proliferação de armas nucleares. Os oito anos em que estive na Casa Branca me alertaram para as dimensões desse desafio. Alguns países anunciaram a intenção de obter tecnologia nuclear para produzir energia e na verdade estavam interessados em fabricar armas atômicas. Hoje temos a ameaça da Coréia do Norte, que aliás já tem armas nucleares, e do Irã. Em todo caso, se houver o desenvolvimento de uma nova geração de reatores mais seguros, poderíamos tolerar o uso moderado dessa energia.

Veja – Em seu documentário, o senhor se refere várias vezes a aspectos de sua vida pessoal. Por quê?
Gore – Um desses episódios foi o incidente com o meu filho, que quase morreu quando criança. Ao vermos um ente querido à beira da morte, somos levados a reavaliar nossas prioridades na vida. O incidente deu-me maior entendimento emocional do significado de uma grande perda. O que será do planeta daqui a vinte anos, caso não façamos nada? O que será dos nossos filhos?

Veja – O presidente George W. Bush rejeitou o Tratado de Kioto para reduzir as emissões de carbono e tomou outras medidas que desagradaram aos ambientalistas. Qual é sua avaliação da política ambiental do presidente americano?
Gore – Eu já perdi a objetividade no que diz respeito a Bush. Todas as suas políticas me assustam. Na verdade, nesse campo suas ações são extremamente perigosas para todo o mundo. O encarregado da pasta de Meio Ambiente de seu governo não passa de um censor. Ele censurou a maioria dos trabalhos científicos sobre meio ambiente. Catorze senadores acabam de começar uma investigação a esse respeito. Espero que o Congresso consiga punir o presidente por isso.

Veja – O senhor ainda está ressentido por ter perdido as eleições presidenciais para Bush apesar de ter obtido maior votação popular?
Gore – Eu não guardo mágoas. Não olho para o passado, olho para o futuro.

Veja – O senhor vai se candidatar novamente à Casa Branca?
Gore – Eu não planejo concorrer. Na verdade, não descarto totalmente essa possibilidade, ainda que não conte com isso.

Veja – O senhor acredita que uma plataforma baseada na defesa do meio ambiente ajuda ou atrapalha na política americana?
Gore – Ajuda, sem dúvida. Os políticos estão começando a perceber isso. Veja o caso de (Arnold) Schwarzenegger na Califórnia. O governador está ganhando força e popularidade graças às suas ações em prol do meio ambiente. Claro que o terrorismo também é um tema importante. Os políticos têm de cuidar das duas coisas de forma inteligente. A guerra no Iraque converteu o terrorismo numa ameaça ainda maior do que já era. Mas o aquecimento global é a pior crise que já enfrentamos.

Veja – No Festival de Cannes, no qual seu documentário foi exibido, o senhor atraiu mais atenção da imprensa do que astros como Tom Cruise e Penélope Cruz. O que é mais emocionante, ser um político ou um astro do cinema?
Gore – Sou velho o bastante para não me iludir com o tapete vermelho. Gostaria, isso sim, de fazer outro filme. O problema é que precisaria de mais trinta anos de experiência em um assunto para ter competência para fazer um filme e ter coragem de apresentá-lo.

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