Em Crônica de uma Fuga, uma
reflexão madura sobre a crueldade
na ditadura militar argentina
Isabela Boscov
Divulgação |
De la Serna enfrenta um torturador: a resistência em seu nível mais primordial |
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Mais curta e mais cruel que a brasileira, a ditadura militar argentina já rendeu várias safras temáticas aos cineastas do país. Crônica de uma Fuga (Crónica de una Fuga, Argentina, 2006), desde quinta-feira em cartaz no país, representa a última palavra nesse filão: sua relativa despolitização. Baseado nas memórias de Claudio Tamburrini, que foi preso político embora nada tivesse a ver com política – jogador de futebol sem afiliação ideológica, ele teve o nome entregue por um conhecido que não queria delatar os verdadeiros companheiros de movimento –, o filme se concentra menos nas razões (ou desrazões) do terror instaurado pelo regime e mais nos aspectos arbitrários, verdadeiramente surreais, que acompanham o exercício extremo da autoridade.
Tamburrini foi seqüestrado na volta de um treino. Não pôde alertar a família sobre sua, por assim dizer, ausência – e também não foi avisado de que essa ausência não seria nenhuma surpresa, uma vez que os interrogadores já haviam espancado sua mãe e coagido sua irmã. Durante meses, ficou numa casa abandonada, de cuecas e venda nos olhos, ora jogado sobre um colchão fétido, ora levando choques, tendo a cabeça mergulhada em água suja ou apanhando. Nesse tempo, dedicou-se à principal atividade de um torturado: reconhecer e interpretar os sinais díspares e não raro contraditórios emitidos pelos diferentes torturadores. E desenvolveu um sistema similar para guiá-lo em relação aos outros presos, já que forçar sua convivência e jogá-los uns contra os outros fazia parte do procedimento. Seria, em qualquer circunstância, uma experiência arrasadora. No caso de Tamburrini, e de outros como ele, ela trazia uma agravante: o fato de que ele não tinha o que ou a quem delatar e, portanto, nenhum segredo a que se agarrar. Trata-se de resistência física e psicológica reduzida ao seu nível mais primordial.
Crônica de uma Fuga tem as virtudes que já se costumam associar ao cinema feito ao sul do Brasil: a direção controlada – no caso, quase espartana –, aqui a cargo do uruguaio Adrián Caetano, e as interpretações marcantes, de uma ponta a outra do elenco. Rodrigo De la Serna, que já se revelara um talento como o melhor amigo de Che Guevara em Diários de Motocicleta, concentra as atenções no papel de Tamburrini. Mas enfrenta competição cerrada por parte de nomes menos conhecidos, como Pablo Echarri e Diego Alonso, que fazem seus torturadores. Crônica não traz grande novidade nem do ponto de vista do assunto nem do da realização. Mas traz qualidade e maturidade. É, de novo, o caso de se perguntar por que – afora o recente, e muito bom, Cabra-Cega, de Toni Venturi – o cinema brasileiro nunca se mostrou capaz de produzir um esforço comparável sobre um tema que, um dia, também já lhe foi caro.