Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, outubro 03, 2006

Míriam Leitão - Sempre a economia


Panorama Econômico
O Globo
3/10/2006

A economia explica tanto o favoritismo do presidente Lula quanto a derrota nos estados que o levaram ao segundo turno. São duas faces da mesma moeda. A queda do dólar reduziu preço de alimentos e deu conforto econômico aos mais pobres; a mesma queda do dólar reduziu receita de produtores rurais e de exportadores. Por isso e pela seca, o Sul entrou em recessão.

O país tem temperaturas econômicas diferentes. Em toda a Região Sul, o Brasil está em crise econômica, principalmente no Rio Grande do Sul. Parte da crise é fruto de duas secas seguidas que fustigaram a região; parte, a descapitalização dos produtores rurais. A queda do dólar derrubou os preços dos alimentos, mesmo os vendidos para o mercado interno. O produtor do Sul é em geral médio e pequeno e se descapitalizou. A crise da agricultura se espalhou para outros setores da economia: a indústria de máquinas agrícolas - em grande parte instalada no Sul - não teve mais encomendas. Cidades atingidas por essa descapitalização tiveram queda de faturamento no setor de serviços. Quem viaja pelo Brasil sabe: a sensação que se tem é mesmo de um país dividido em humores e interpretações opostas quando se trata de avaliar o que se passa na economia.

O Sul votou contra o governo federal e, em alguns casos, até contra o estadual. Tirou Germano Rigotto do páreo numa espécie de "contra tudo isso que está aí", e deu um susto em Roberto Requião.

Essa sensação de descapitalização também atinge o grande produtor do Centro-Oeste, ainda que seja uma agricultura feita em escalas diferentes.

A soja sofreu mais que outras culturas, porque ficou com um câmbio desfavorável e preços que não se recuperaram. Já o produtor de açúcar e álcool teve a compensação dos preços altos no mercado internacional. A avicultura e a produção de carne bovina enfrentaram também as doenças. A febre aftosa tirou mercado e preço do exportador brasileiro. A gripe aviária reduziu o mercado de frango. A doença de Newcastle piorou ainda mais a situação.

Independentemente de serem ou não problemas causados pelo governo, eles tiraram vigor da economia, renda do empresário e do consumidor e humor do eleitor.

No Nordeste e entre os mais pobres, o que houve foi o lado oposto desta mesma moeda. A inflação baixa, pelo câmbio e outros motivos, permitiu que eles tivessem mais renda disponível. O preço do cimento também ficou acessível. O cidadão comeu melhor, com menos dinheiro, e ainda conseguiu fazer um puxadinho na casa. A sensação de conforto que ele sentiu foi semelhante, ainda que menos intensa, ao que sentiu durante a recuperação do poder de compra pela queda rápida da inflação em 94. Esse eleitor vota Lula porque sente que sua vida ficou melhor. Isso sem falar na farta distribuição de Bolsa Família, que um dia foi um bom programa social e que no período pré-eleições ganhou feição de simples cabo eleitoral.

O país está dividido geograficamente, mas o mapa da divisão não é Nordeste contra Sul, por razões regionais; ou pobres contra ricos, por conflito de classes. Não há nas diferenças entre os dois candidatos programas distintos ideologicamente. Não há um candidato propondo o socialismo e o outro, o liberalismo. São parecidos nas idéias, programas sociais, tendências.

Eles são diferentes em vários pontos, mas não há uma clivagem ideológica.

Lula continuou o que foi instalado por Fernando Henrique na área macroeconômica e que seria retomado, com ajustes, por Geraldo Alckmin caso ele seja eleito. Nesse segundo turno talvez eles consigam até marcar algumas diferenças nessas áreas. Alckmin apresentando-se como mais fiscalista, Lula defendendo um aumento dos gastos sociais. Mas não há conflitos regionais nem sociais; o Brasil não é Venezuela e dificilmente se transformaria. Temos essa sorte.

O eleitor brasileiro mais uma vez mostrou sabedoria e maturidade. Lula reeleito no primeiro turno seria um político eleitoralmente muito forte com pés de barro. Como o PT diminuiu sua bancada no Congresso e outros dos seus apoiadores estão batendo na cláusula de barreira, ele seria também politicamente fraco. Uma mistura assim pode ser explosiva. Lula poderia ser tentado a contornar dificuldades de formação de maioria parlamentar ou de aprovação de projetos, simplesmente traçando uma linha direta com as massas.

Agora ele teve sua lição de humildade. Sua primeira reação foi ruim. Na noite de domingo ele mandou o ministro Tarso Genro falar sobre o resultado. Não era hora de emissários. O momento, o papel de presidente, os milhões de votos que recebeu, o ritual democrático exigiam que fosse ele a falar, para agradecer os votos, para renovar a fé na democracia. Contrariado, fechou-se. Felizmente ontem recobrou-se e fez, ainda que tarde, o elogio ao processo eleitoral. Em 1989, quando perdeu, Lula fez o governo paralelo; em 94 e 98, nunca reconheceu a derrota ou desejou sorte ao vencedor, como de praxe. No domingo, demonstrou contrariedade pelo silêncio. Foi seu primeiro erro do segundo turno, em parte contornado com a entrevista de ontem.

O segundo turno será polarizado, como todo segundo turno e toda reeleição. É plebiscitário mesmo. As acusações de corrupção e o dossiê vão assombrar o candidato-presidente. Mas haverá espaço para debater idéias, projetos, soluções e diferenças entre os candidatos. A tendência de Lula e Alckmin será politizar o debate, mas Lula fará um desserviço se continuar na toada de apresentar-se como o defensor dos pobres contra a rica e perversa elite.

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