Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, outubro 03, 2006

Luiz Garcia - Virgínia e a História




O Globo
3/10/2006

Um peculiar documento está exposto no site da Funarte. É a entrevista, parte de uma série com artistas, da aposentada vedete Virgínia Lane.

Quando fala de sua vida artística, Virgínia é exuberante, engraçada; com justas razões, vaidosa de seu passado. Mas as recordações de sua vida pessoal são outra história.

Virgínia diz, por exemplo, que teve longo caso amoroso com Getúlio Vargas. Pode ser verdade: não teria sido caso único na crônica dos políticos brasileiros. Mas detalhes sobre lugares e momentos mostram sério antagonismo entre a imaginação da entrevistada e fatos históricos conhecidos. Numa das historinhas, Vargas teria exigido de um bispo, e conseguido, que a vedete tivesse permissão para entrar na igreja da Glória de véu e grinalda para um de seus dois casamentos.

Mais fantasiosa ainda é a informação de que Virgínia teria viajado extensamente com Getúlio: ela diz que conheceram juntos 48 países, inclusive a China.

O entrevistador, de nome Sérgio Faria, aceita sem discussão todas as histórias. Por um lado, entende-se: é impossível discutir com uma memória esclerosada. Mas é estranho que um órgão oficial, parte do Ministério da Cultura, considere um depoimento tão fantasioso algo que valha a pena ser registrado e divulgado.

A fantasia mais alucinante vem no fim. Virgínia anuncia uma revelação histórica: na noite da morte de Vargas, ela estava com ele em sua cama no Palácio do Catete. Em dado momento, malfeitores arrombam a porta para assassinar o presidente. Ela vê, no corredor, o político Carlos Lacerda, maior adversário político de Vargas na época, mandando que os bandidos atirem. Os homens obedecem: Getúlio morre com dois tiros na nuca. Não no coração, como disse a autópsia e mostram fotos do corpo publicadas na época.

Tem mais: Virgínia diz que foi jogada, nua, por uma janela do palácio. Em seguida, os assassinos a espancaram e a deixaram, ainda despida, numa estrada deserta. Ela afirma que foi resgatada pelo general Góis Monteiro, que, por uma sorte extraordinária, casualmente passava por ali.

Um pasquim irresponsável talvez achasse natural divulgar essas fantasias. Um órgão do Estado, não dá para entender. Pode ser que, dado o evidente absurdo das histórias, os descendentes de pessoas públicas como Vargas e Lacerda não dêem importância às fantasias de Virgínia. E talvez a própria família da atriz não se preocupe com essa exploração de seu estado mental. Mas onde fica a imagem da Funarte como organização séria, zelosamente ocupada na preservação da memória nacional?

A senilidade merece respeito e discrição. Não exposição irresponsável.

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