José Nêumanne
Os mapas eleitorais do primeiro turno da eleição presidencial deste ano não deixam dúvida nenhuma quanto à divisão do Brasil em dois países distintos: os 16 Estados onde o presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva esmagou seu adversário tucano Geraldo Alckmin sob uma avalanche de votos e os 11 em que este conseguiu superar o oponente, embora sem vantagem similar. Para evitar simplismos e preconceitos talvez não seja o caso de definir a primeira banda como a do Brasil pobre e a segunda, como a do rico (no máximo, remediado). Mas é possível afirmar, sem erro metodológico, que o favoritismo do presidente à própria reeleição é sustentado pelo apoio que recebe do lado do País mais dependente das benesses (no caso do Bolsa-Família das esmolas) do Estado provedor. Enquanto o outro lado, cuja renda provém basicamente da capacidade de empreendimento privado, reagiu de modo a assegurar a disputa em segundo turno, embora talvez ainda não disponha de número de sufrágios suficientes para levar o pretendente do PSDB à vitória definitiva.
Se os institutos de pesquisa não estiverem incorrendo em erro igual ao que cometeram em dois Estados de grande eleitorado, a Bahia e o Rio Grande do Sul, é de esperar que a reação indignada dos eleitores mais abonados e informados à desfaçatez do governo petista de tentar encobrir maracutaias e proteger delinqüentes não baste para impedir a reeleição de Lula. Caso se confirmem os prognósticos de sua vantagem, hoje em torno dos dez pontos porcentuais, o ex-dirigente sindical do ABC industrial, egresso do interior rural do Nordeste, comprovará que terá valido a pena sua estratégia de deixar a classe média pela primeira vez de fora do jogo político no Brasil. Até esta eleição, tinha-se como fundamental o papel exercido pelos chamados “formadores de opinião” dos segmentos intermediários da sociedade brasileira para o êxito de qualquer líder político com pretensões a vencer disputas majoritárias.
Ao contrário do que pensam alguns ingênuos, não haverá daqui a 11 dias uma disputa entre esquerda e direita. Luiz Inácio Lula da Silva transcendeu e ultrapassou os limites dos currais eleitorais da esquerda tradicional brasileira e também revolucionou os padrões dos três tipos de populismo sob cuja égide o País já foi governado. O líder da primeira corrente populista bem-sucedida na política nacional, Getúlio Vargas, era um abastado proprietário rural, namorou o nazi-fascismo com a mesma desfaçatez com que fez gestos simpáticos à esquerda e manobrava os cordéis da política distribuindo benesses a coronéis regionais e líderes sindicais. Entrou para a História pela habilidade em manipular o chumbo do Diário Oficial, jamais pela empolgação de seu discurso monótono e monocórdio. Ademar de Barros, a cuja estirpe pertencem Paulo Maluf e Orestes Quércia, era esperto o suficiente para saber que o brasileiro médio (no caso, em especial o paulista) é pragmático a ponto de conviver passivamente com alguma leniência com a corrupção, desde que seus interesses sejam atendidos. Jânio Quadros, a cuja linhagem de populismo se filia Fernando Collor, instigava no eleitorado um certo gosto pela emoção e pela aventura com seu discurso empolgante e de uma lógica superficial e aparente. Todos eles namoraram a classe média para seduzir o voto pobre.
Treinado na escola do sindicalismo atrelado às tetas do Estado, engendrado por Getúlio, o atual presidente aprendeu com o ademarismo a duvidar do êxito do discurso anticorrupção nos segmentos mais pobres e, com os erros do janismo, a assegurar uma boa base partidária de apoio sem, contudo, nunca se submeter a ela. Como todos os seus antecessores, elegeu-se pela primeira vez com o apoio de parcela importante dos segmentos intermediários da sociedade, o que conseguiu fazendo a promessa messiânica de uma gestão competente e imune aos escusos interesses privados para a República. Mas a inexistência de quadros à altura da mística disseminada pelo PT e a cultura da “boquinha” levada a extremos produziram uma mistura de incompetência gerencial generalizada e cinismo sem limites na malversação do dinheiro público. No comando de uma equipe de governo acusada de protagonizar episódios cabeludos de corrupção, o hirsuto chefão petista viu-se obrigado a dar uma guinada de 180 graus no discurso do monopólio da ética, substituindo-o pelo da isonomia da indecência. Passou a usar a mistificação da invenção da roda, traduzida no “nunca antes” de balanços administrativos sobre o vácuo. E tentou salvar a face virando a boca dos canhões dos adversários contra os próprios artilheiros com a adoção do bordão humorístico: “Sou, mas quem não é?” E, de fato, estes agiram como se o fossem mesmo, só para salvar alguns mandatos na pizzaria geral.
Foi aí que virou as costas para a classe média, à qual pertencia desde que fora diplomado torneiro mecânico no Senai, dividindo o País em “azelite”, do lado oposto, e os próprios companheiros. Pilhado com um rótulo de “opus dei” no peito, Geraldo Alckmin se viu confinado a um contingente capaz de fazer algum barulho, mas insuficiente para lhe dar os votos necessários para o triunfo final: pelo menos é o que prevêem todas as pesquisas.
Ao favorecer os banqueiros, propiciando às cinco maiores instituições financeiras em três anos um lucro 26% superior ao auferido nos oito anos dos governos anteriores, tidos como súditos deles, e o lúmpen-proletariado dependente da Bolsa Família, com 23% a mais de renda em sua gestão, Lula foi além do populismo. Caso vença a disputa final, terá fundado a democracia de massas numa República que há menos de cem anos era governada pelos donos de terras e na qual ainda neste século o povo precisava de intermediários para freqüentar o Paraíso.