Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 29, 2006

Uma crise de governo

EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO
 
Uma crise de governo

Pela sua natureza, por seus protagonistas, por seus efeitos imediatos e por seus desdobramentos imprevisíveis, pode-se dizer com absoluta segurança que a crise da Caixa - a violação e a divulgação ilegais do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa - é mais grave até do que a crise do mensalão. Essa, a rigor, jamais adquiriu a dimensão de crise de governo, embora tivesse custado ao ministro José Dirceu o cargo e o mandato de deputado, porque a oposição poupou o presidente Lula. Já a crise da Caixa desembocou exatamente nisso. Daí por que as demissões do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e do titular da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, não são um epílogo da crise, mas a abertura de um processo de metástase, cuja gravidade é impossível subestimar.

As tentativas do mandante presumível e do responsável confesso dos crimes contra Francenildo de enganar o público seriam patéticas, não fossem um escárnio, perto das quais empalidecem as versões do ex-tesoureiro petista Delúbio Soares sobre o suborno de parlamentares pelo PT. Palocci e Mattoso, principalmente o primeiro, caíram mentindo até o fim. O primeiro, dissimulador reincidente, sustentou que não teve "nenhuma participação" na quebra do sigilo e no vazamento dos dados do caseiro, mesmo sabendo que Mattoso confessara à Polícia Federal ter-lhe entregue em mãos os extratos obtidos criminosamente - como ele lhe pedira, para poder exibi-los à revista Época. E este quer que se acredite que fez o que fez "no pleno e legítimo exercício de minhas funções". Foi indiciado. Palocci também será.

Eis a essência da crise até aqui: o mais importante e respeitado ministro do governo Lula e o presidente do segundo maior banco comercial público do País tentaram enxovalhar o humilde trabalhador que teve o desplante de afirmar, com pencas de detalhes, que o ministro mentiu ao Congresso quando negou ter ido ao casarão onde a patota de Ribeirão Preto fazia das suas. Não só fracassaram, como deixaram claro o quanto são capazes de descer - não fossem eles fiéis cumpridores do código de ética petista. E o presidente da República escala o companheiro senador Aloizio Mercadante para recitar a patranha de que "os que estavam envolvidos tiveram a grandeza de reconhecer a gravidade do erro (sic!!!) e pediram o afastamento do governo" e para elogiar o "espírito público" de Palocci.

E eis o legado imediato da crise: ainda que não se prove a participação de nenhuma outra alta autoridade da administração direta ou indireta nos delitos praticados em represália à entrevista-bomba de Francenildo a este jornal, tem-se um presidente desprovido do último dos seus arrimos no governo e um novo ministro da Fazenda, o ex-presidente do BNDES Guido Mantega, que diz que fará o que o chefe mandar em matéria econômica. Ora, Lula, que nunca gostou de governar, desde o início dividiu essa tarefa entre a Casa Civil e a Fazenda. Até pouco tempo atrás, nunca teve problema na Fazenda, por ter tido a ventura de escolher para o comando da economia um político de mão-cheia, dotado de surpreendente conhecimento do setor, invejável capacidade de persuasão e irrepreensível imagem pública.

Com José Dirceu na Casa Civil e Palocci na Fazenda as forças em confronto no Planalto se equilibravam, embora, no papel de árbitro, o presidente sistematicamente desempatasse o jogo em favor do segundo. Quando Dirceu foi substituído pela então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, os ventos começaram a mudar de direção. Pela primeira vez, Lula tomou partido contra Palocci quando ela investiu contra o seu plano de endurecer ainda mais a política fiscal. Pressionada pela reeleição, a política econômica também começou a mudar - se não de gênero, certamente de número e grau -, como mostra o editorial Desafio para o novo ministro, publicado nesta página.

Nessa conjuntura, Lula chama para a Fazenda um quadro ideologicamente alinhado com a companheira Dilma. Ele disse - como não podia deixar de dizer - que manterá a política econômica. Mas disse também que mexerá na equipe de Palocci. O secretário-executivo da Pasta, Murilo Portugal, nem esperou e saiu, e o secretário do Tesouro, Joaquim Levy, está para sair. Dificilmente a Fazenda continuará a ser o único setor de peso do Executivo imune ao aparelhamento. E, com Mantega no lugar de Palocci, acaba a divisão de poder entre Casa Civil e Fazenda. Mantega fará o que Dilma mandar.

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