ESTADÃO
sinopse
Ler ensaios, resenhas e histórias da arte é um dos meus maiores prazeres desde que, na infância, passei a dividir meu tempo entre desenhar e ler. Em face dos textos que encontramos nas paredes ou nos catálogos das exposições atuais, para não falar de livros e publicações especializados, fica difícil acreditar que alguns dos melhores es critores, no sentido amplo da palavra, foram ou são críticos de arte. Mas não é difícil entender o motivo. Analisar pinturas e esculturas (e arquitetura) exige a combinação dos poderes de descrição e argumentação, a capacidade de fazer o leitor ver e refletir junto, o domínio da língua como instrumento de sensibilidade e convencimento.
Lembro a conhecida história de que Flaubert pedia a Maupassant, enquanto caminhavam, que descrevesse uma das árvores de tal forma que ele a identificasse em meio a todas as outras. Essa visualização devia ser sintética e atraente; uma troca simples de palavra ou da posição de uma palavra ou trecho, suficiente para não soar convencional ou burocrático.
Quando você precisa fazer isso e persuadir o leitor de suas idéias e opções, o desafio é ainda maior. Diderot e Baudelaire escreveram sobre arte, e o gran de crítico John Ruskin foi a maior influência estilística sobre a literatura de Proust; Roberto Longhi, Bernard Berenson, Pope-Hennessy, Giulio Car lo Argan, Roger Fry, Ernst Gombrich, Harold Rosenberg ou até Clement Greenberg, todos tinham grande texto; Kenneth Clark foi um estilista como poucos na prosa inglesa.
Hoje em dia eles são raros.
Textos sobre artes plásticas são uma confusão de conceitos, de jargões, como se deter os olhos com calma sobre os detalhes e as sugestões de cada elemento do objeto fosse secundário; o que importa é a teorização, não raro muito mais inócua ou batida do que tenta parecer.
Mesmo quando a teoria está a cargo de um Arthur C. Danto, autor de A Transfiguração do Lugar-Comum (em lançamento só agora no Brasil pela Cosac Naify), o prazer não se compara.
Mas há exceções como Robert Hughes, de quem este jornal publicou belo ensaio sobre Rembrandt na semana passada; Peter Schjeldahl, o crítico da New Yorker que no último número escreveu sobre a mostra de Munch no MoMA; ou John Updike, de quem acabo de receber o livro Still Looking (Knopf), com 18 textos muito bem ilustrados.
Sempre me perguntam que tipos de livros costumo ler que não são traduzidos, por serem considerados caros ou específicos pelas editoras brasileiras.
Afora os de ciência (e não me refiro aos técnicos), respondo sempre que são os de arte. Biografias como a de Picasso por John Richardson, a de Matisse por Hilary Spurling, a de Rembrandt por Simon Schama e a de Goya por Robert Hughes, assim como as antologias des ses e de outros críticos contemporâneos, inclusive o francês Jean Clair e o italiano Vittorio Sgarbi, quase não chegam. Catálogos de exposições marcantes, como a seminal High & low
de Kirk Varnedoe e Adam Gopnik, nem pensar. Toda essa tur ma escreve muito bem, e cada um desses livros é uma peça artística em si, de tão caprichado e agradável.
Você não encontra em nosso mercado editorial uma coletânea tão bem produzida como
Still Looking, que é uma espécie de continuação de Just Looking, só que dedicada exclu sivamente à arte americana.
Quando Updike diz que uma aquarela de Whistler é 'um triunfo de restritos meios - uma aparente bagunça de pinceladas sujas em meio a áreas cinzas que se resolve num cavalo e numa carruagem na rua de janelas encobertas. Ele fez o inefável: ele pintou a neblina', a sensação é a de que vemos mais coisas na tela do que à primeira vista. E quando ele nota o silêncio teatral de Hopper ou a armadilha dos 'drippings' em que Pollock caiu, entre tantos exemplos, você assente.
Não que Updike seja Hughes, cujo maior dom de interpretação é perfeitamente acompanhado pelo de exposição. Cha mar Rembrandt de 'topógrafo do barro humano' e argumentar que foi 'barroco e realista ao mesmo tempo', como Hughes, são iluminações; a última em especial me deixou feliz, porque escrevi o mesmo na revista Continente Multicultural. No papel de fundo de meu monitor, coloquei a reprodução de seu Aristóteles Contemplando o Busto de Homero (1653). Dizem de Homero que, por sua habilidade descritiva dos movimentos e anatomias, poderia ter sido médico; e Aristóteles, entre sombras e luzes, o observa com reverência e melancolia, ciente dos limites de sua poderosa lógica. Essa mão apoiada sobre o crânio do poeta, que tenta aproximar o sensível e o racional, é a própria crítica de arte - senão a própria definição de pensamento.
RODAPÉ (1)
A biografia de José de Alencar por Lira Neto, O Inimigo do Rei
(Globo), tem um texto fluente e informativo e torna o autor de O Guarani e Senhora muito mais in teressante do que sugerem nossos vestibulares. Lira Neto não faz muitas análises da obra, da ficção - longe de inovadora, ainda que fundadora - de Alencar, e se concentra em suas polêmicas políticas, especialmente nas ótimas crônicas de Ao Correr da Pena. Ele teve a lucidez de criticar a Guerra do Paraguai e, o que é bem mais difícil, em cima dos fatos; ao contrário de seu pupilo Machado de Assis, viu desde cedo a impostura de Dom Pedro II. Mas Lira Neto também acentua suas contradições, es pecialmente sua oposição ao abolicionismo que Machado apoiou e seu período como senador conservador. O tema da biografia acaba sendo o próprio Brasil e sua tragicomédia.
RODAPÉ (2)
Inimigo do rei era também O Pasquim, que finalmente começa a ganhar antologia. O primeiro de previstos quatro volumes, organizado por Sérgio Augusto e Jaguar para a editora Desiderata, traz textos e desenhos de 1969 a 71 feitos não só pela turma que criou o jornal - além dos dois organizadores, Tarso de Castro, Henfil, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Ziraldo -, mas também por colaboradores como Otto Maria Carpeaux, Otto Lara Resende, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar e muitos mais. Algumas pessoas gostam de reduzir o tablóide a um estilo só, um 'ipanemês'; ao mesmo tempo, esquecem que foi uma publicação alternativa, uma união de articulistas que usou doses extras de humor e malícia em tempos autoritários, e não um diário noti cioso. Elas quebram a cara diante da qualidade desse volume. Dica minha: é duca.
VALORES VIRTUAIS
'A internet é o fim da profissão de jornalista. Ou pelo menos da dignidade dela. O mais digno, barrigudo e pomposo jornalista corre o risco de ser xingado por um molequinho em Mogi das Cruzes. Ou de ser contestado num detalhe qualquer por um sujeito vagamente desequilibrado que mora entre pilhas de jor nais velhos no Baixo Leblon.
Não importa se o texto estava liricamente, solenemente, melancolicamente, maravilhosamente escrito.' Alexandre Soares Silva, um dos melhores blogueiros que acompanho.
ZAPPING
Assisti a Falcão - Meninos do Tráfico ,no Fantástico, e não achei tão chocante quanto propagandeado. A indignação, claro, não muda. Especialmente triste é a seqüência do menino que, 'balão' de tudo, mostra quase total indiferença entre estar vivo ou morto. O que acho é que outros documentários, como Notícias de uma Guerra Particular, revelam mais os bastidores e a bilheteria por trás desse cenário. E sinto um incômodo com o que às vezes tem a aparência de uma 'indústria do impacto', embalada assim em produtos emotivos.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Em entrevista baba-ovo, com erro de latim e tudo, Fernando Henrique Cardoso disse à Veja : 'O capitalismo tem um problema que me irrita: a desigualdade. É da sua essência.' Não lhe ocorre que só o capitalismo reduziu a desigualdade nos países em que foi adotado a sério, com regras claras e fiscalização constante? A essência do socialismo ou - para entrar no contexto latino-americano - do autarquismo é que é a desigualdade, ao promover uma trupe de 'eleitos' que se arrogam a determinar o presente e o futuro da sociedade e do mercado.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Quer dizer que o sigilo bancário do PT, de Okamotto e de tantos contraventores confessos não pode ser aberto, mas o de um 'simples caseiro' - como diz Lula, o populista elitista - é escancarado na Caixa Econômica Federal na mesma noite em que ele depõe na PF? Todas essas manobras autoritá rias podem esconder muitos fatos, mas, como sempre, não vão impedir os símbolos. Que símbolo melhor da orgia que os políticos fazem com o dinheiro público do que a República de Ribeirão Preto, do 'mestre' Palocci e seus aprendizes?
Lembro a conhecida história de que Flaubert pedia a Maupassant, enquanto caminhavam, que descrevesse uma das árvores de tal forma que ele a identificasse em meio a todas as outras. Essa visualização devia ser sintética e atraente; uma troca simples de palavra ou da posição de uma palavra ou trecho, suficiente para não soar convencional ou burocrático.
Quando você precisa fazer isso e persuadir o leitor de suas idéias e opções, o desafio é ainda maior. Diderot e Baudelaire escreveram sobre arte, e o gran de crítico John Ruskin foi a maior influência estilística sobre a literatura de Proust; Roberto Longhi, Bernard Berenson, Pope-Hennessy, Giulio Car lo Argan, Roger Fry, Ernst Gombrich, Harold Rosenberg ou até Clement Greenberg, todos tinham grande texto; Kenneth Clark foi um estilista como poucos na prosa inglesa.
Hoje em dia eles são raros.
Textos sobre artes plásticas são uma confusão de conceitos, de jargões, como se deter os olhos com calma sobre os detalhes e as sugestões de cada elemento do objeto fosse secundário; o que importa é a teorização, não raro muito mais inócua ou batida do que tenta parecer.
Mesmo quando a teoria está a cargo de um Arthur C. Danto, autor de A Transfiguração do Lugar-Comum (em lançamento só agora no Brasil pela Cosac Naify), o prazer não se compara.
Mas há exceções como Robert Hughes, de quem este jornal publicou belo ensaio sobre Rembrandt na semana passada; Peter Schjeldahl, o crítico da New Yorker que no último número escreveu sobre a mostra de Munch no MoMA; ou John Updike, de quem acabo de receber o livro Still Looking (Knopf), com 18 textos muito bem ilustrados.
Sempre me perguntam que tipos de livros costumo ler que não são traduzidos, por serem considerados caros ou específicos pelas editoras brasileiras.
Afora os de ciência (e não me refiro aos técnicos), respondo sempre que são os de arte. Biografias como a de Picasso por John Richardson, a de Matisse por Hilary Spurling, a de Rembrandt por Simon Schama e a de Goya por Robert Hughes, assim como as antologias des ses e de outros críticos contemporâneos, inclusive o francês Jean Clair e o italiano Vittorio Sgarbi, quase não chegam. Catálogos de exposições marcantes, como a seminal High & low
de Kirk Varnedoe e Adam Gopnik, nem pensar. Toda essa tur ma escreve muito bem, e cada um desses livros é uma peça artística em si, de tão caprichado e agradável.
Você não encontra em nosso mercado editorial uma coletânea tão bem produzida como
Still Looking, que é uma espécie de continuação de Just Looking, só que dedicada exclu sivamente à arte americana.
Quando Updike diz que uma aquarela de Whistler é 'um triunfo de restritos meios - uma aparente bagunça de pinceladas sujas em meio a áreas cinzas que se resolve num cavalo e numa carruagem na rua de janelas encobertas. Ele fez o inefável: ele pintou a neblina', a sensação é a de que vemos mais coisas na tela do que à primeira vista. E quando ele nota o silêncio teatral de Hopper ou a armadilha dos 'drippings' em que Pollock caiu, entre tantos exemplos, você assente.
Não que Updike seja Hughes, cujo maior dom de interpretação é perfeitamente acompanhado pelo de exposição. Cha mar Rembrandt de 'topógrafo do barro humano' e argumentar que foi 'barroco e realista ao mesmo tempo', como Hughes, são iluminações; a última em especial me deixou feliz, porque escrevi o mesmo na revista Continente Multicultural. No papel de fundo de meu monitor, coloquei a reprodução de seu Aristóteles Contemplando o Busto de Homero (1653). Dizem de Homero que, por sua habilidade descritiva dos movimentos e anatomias, poderia ter sido médico; e Aristóteles, entre sombras e luzes, o observa com reverência e melancolia, ciente dos limites de sua poderosa lógica. Essa mão apoiada sobre o crânio do poeta, que tenta aproximar o sensível e o racional, é a própria crítica de arte - senão a própria definição de pensamento.
RODAPÉ (1)
A biografia de José de Alencar por Lira Neto, O Inimigo do Rei
(Globo), tem um texto fluente e informativo e torna o autor de O Guarani e Senhora muito mais in teressante do que sugerem nossos vestibulares. Lira Neto não faz muitas análises da obra, da ficção - longe de inovadora, ainda que fundadora - de Alencar, e se concentra em suas polêmicas políticas, especialmente nas ótimas crônicas de Ao Correr da Pena. Ele teve a lucidez de criticar a Guerra do Paraguai e, o que é bem mais difícil, em cima dos fatos; ao contrário de seu pupilo Machado de Assis, viu desde cedo a impostura de Dom Pedro II. Mas Lira Neto também acentua suas contradições, es pecialmente sua oposição ao abolicionismo que Machado apoiou e seu período como senador conservador. O tema da biografia acaba sendo o próprio Brasil e sua tragicomédia.
RODAPÉ (2)
Inimigo do rei era também O Pasquim, que finalmente começa a ganhar antologia. O primeiro de previstos quatro volumes, organizado por Sérgio Augusto e Jaguar para a editora Desiderata, traz textos e desenhos de 1969 a 71 feitos não só pela turma que criou o jornal - além dos dois organizadores, Tarso de Castro, Henfil, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Ivan Lessa, Ziraldo -, mas também por colaboradores como Otto Maria Carpeaux, Otto Lara Resende, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar e muitos mais. Algumas pessoas gostam de reduzir o tablóide a um estilo só, um 'ipanemês'; ao mesmo tempo, esquecem que foi uma publicação alternativa, uma união de articulistas que usou doses extras de humor e malícia em tempos autoritários, e não um diário noti cioso. Elas quebram a cara diante da qualidade desse volume. Dica minha: é duca.
VALORES VIRTUAIS
'A internet é o fim da profissão de jornalista. Ou pelo menos da dignidade dela. O mais digno, barrigudo e pomposo jornalista corre o risco de ser xingado por um molequinho em Mogi das Cruzes. Ou de ser contestado num detalhe qualquer por um sujeito vagamente desequilibrado que mora entre pilhas de jor nais velhos no Baixo Leblon.
Não importa se o texto estava liricamente, solenemente, melancolicamente, maravilhosamente escrito.' Alexandre Soares Silva, um dos melhores blogueiros que acompanho.
ZAPPING
Assisti a Falcão - Meninos do Tráfico ,no Fantástico, e não achei tão chocante quanto propagandeado. A indignação, claro, não muda. Especialmente triste é a seqüência do menino que, 'balão' de tudo, mostra quase total indiferença entre estar vivo ou morto. O que acho é que outros documentários, como Notícias de uma Guerra Particular, revelam mais os bastidores e a bilheteria por trás desse cenário. E sinto um incômodo com o que às vezes tem a aparência de uma 'indústria do impacto', embalada assim em produtos emotivos.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Em entrevista baba-ovo, com erro de latim e tudo, Fernando Henrique Cardoso disse à Veja : 'O capitalismo tem um problema que me irrita: a desigualdade. É da sua essência.' Não lhe ocorre que só o capitalismo reduziu a desigualdade nos países em que foi adotado a sério, com regras claras e fiscalização constante? A essência do socialismo ou - para entrar no contexto latino-americano - do autarquismo é que é a desigualdade, ao promover uma trupe de 'eleitos' que se arrogam a determinar o presente e o futuro da sociedade e do mercado.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Quer dizer que o sigilo bancário do PT, de Okamotto e de tantos contraventores confessos não pode ser aberto, mas o de um 'simples caseiro' - como diz Lula, o populista elitista - é escancarado na Caixa Econômica Federal na mesma noite em que ele depõe na PF? Todas essas manobras autoritá rias podem esconder muitos fatos, mas, como sempre, não vão impedir os símbolos. Que símbolo melhor da orgia que os políticos fazem com o dinheiro público do que a República de Ribeirão Preto, do 'mestre' Palocci e seus aprendizes?