O GLOBO
O relatório de inflação divulgado ontem mostrou que continua a haver espaço para a queda dos juros. Haverá mais quatro reuniões do Copom até as eleições e uma outra entre o primeiro e o segundo turno. Mas o tom do relatório não indica que o Banco Central vai acelerar a queda. Pelo contrário: no segundo semestre, as taxas talvez passem a cair bem mais devagar. O ministro Guido Mantega ficará no dilema: se falar o que pensa, pode causar atrito com o BC; se ficar em silêncio, estará engolindo o que pensa.
O cenário econômico favorece o governo neste ano que prenuncia ter uma das mais violentas campanhas eleitorais. Em parte pelo trabalho do órgão mais criticado da República — o Banco Central —, a inflação está em queda e os juros vão continuar caindo. E porque os juros estão caindo, há chance de recuperação do nível de atividade nos próximos trimestres. No relatório de ontem, o BC disse que a queda da inflação se deve também à ação da taxa de juros. Ela está, na verdade, desabando. Ontem, a deflação no IGP-M levou o índice em doze meses a ficar em 0,4%, o menor número desde 1944.
A evolução da conjuntura criou um ambiente curioso: a tão condenada política de juros é que está criando o pano de fundo favorável à reeleição de Lula. O próprio trabalho do Banco Central vai ser mais fácil este ano. Primeiro, porque, como lembrou o Relatório de Inflação, a diferença entre a meta e a inflação nos doze meses anteriores era, no ano passado, de 2,5 pontos percentuais (inflação de 7,6% para o objetivo de 5,1%). Agora o esforço é bem menor: a inflação está em 5,3% e a meta é 4,5%. Segundo: pela projeção do BC, se os juros não caíssem nada nos próximos meses, a inflação chegaria, ao fim do ano, em 3,7%. Ou seja: os juros podem e vão baixar.
Isso cria um cenário fácil para o governo: exatamente quando o presidente está em campanha eleitoral e precisa muito de fatos econômicos bons para os seus discursos, os juros estarão caindo; exatamente quando assume um ministro que faz parte do coro antijuros, as taxas estão em queda. Isso significa que Lula terá o que quer e Guido Mantega não precisará fazer críticas ao Banco Central.
Podem ocorrer ruídos por causa do ritmo de queda. O que o BC diz no capítulo das perspectivas de inflação, a partir da página 103 do relatório, é que a inflação está caindo graças à política de juros, mas que é preciso cautela por dois motivos: o efeito "intertemporal" da queda das taxas de juros e os preços do petróleo. Ou seja, a redução dos juros, que começou no ano passado e continua atualmente, pode ter efeito inflacionário mais adiante e a escalada dos preços do petróleo no mercado internacional pode acabar alterando as projeções de inflação. Outra situação curiosa porque, se o problema é preço de petróleo e o governo já deu demonstração de que usa a Petrobras politicamente, a alta internacional pode simplesmente não ser repassada. Diante disso, o que poderá fazer o Banco Central? Calcular o que aumentaria caso se seguissem os preços internacionais?
É possível que os juros caiam mais 0,75 ponto percentual em cada uma das duas próximas reuniões: 19 de abril e 31 de maio. Se for assim, os juros chegarão ao fim do primeiro semestre em 15%. Por um lado, será uma boa notícia para o governo; por outro, a queda não estará sendo acelerada como gostaria o governo e este nível continua sendo alto demais em qualquer comparação. Certamente, Guido Mantega gostaria de inaugurar seu período com quedas maiores de juros. O que alimentará essa vontade do ministro será o quadro da inflação: ela está baixa e caindo, como mostrou o IGP-M de ontem. A tendência da inflação é de queda por vários motivos: o câmbio está baixo demais e puxando os preços para baixo; a crise de alguns alimentos, como os do setor carne, está derrubando os preços internamente, a gripe aviária reduz o consumo de milho e o preço também tende a cair. O IGP-M divulgado ontem mostrou que caíram de preço: arroz, milho, soja, café e aves. Devido a esses resultados, os preços por atacado na área agrícola (IPA-M agrícola) tiveram deflação de 2,36% este mês. Por causa dos juros, do câmbio e até das fatalidades, a inflação tende a cair nos próximos meses. Com base nisso, o ministro ficará tentado a pressionar por quedas maiores de juros, mas nada poderá fazer. Se o fizer, pode acabar criando uma crise que prejudicaria o próprio presidente-candidato.
O Banco Central continuará reduzindo a Selic no ritmo lento de sempre. Os diretores estão convencidos de que é assim que funciona. No segundo semestre, será uma incógnita. Alguns analistas acham que, nas reuniões de 19 de julho e 30 de agosto, os juros podem cair apenas 0,25 ponto percentual em cada reunião. Isso já levaria a taxa a níveis baixos para os padrões brasileiros, 14,5%, mas essa redução do ritmo será, sem dúvida, um ponto de atrito entre o ministro da Fazenda e o BC.
Se tudo acontecer como o Banco Central está calculando, o ano termina com um crescimento de 4%, juros reais de um dígito, juros nominais mais baixos da nossa história recente e inflação na meta. Ou seja, os ortodoxos diretores do Banco Central, debaixo de críticas do governo e do PT, terão criado a melhor chance que o governo petista tem de ser reeleito. Se o PT perder a eleição, não terá sido por causa do inimigo que tanto odeia, a taxa de juros, mas por seus próprios erros na área moral. Serão os negócios escusos com o dinheiro público, e não o preço do dinheiro, o calcanhar-de-aquiles do governo na eleição de 2006.