Uma conta de chegar
Quando se fala para dizer exatamente o que se pensa, sem censuras mentais, se procura utilizar a linguagem mais simples e corriqueira com preocupação precípua de ser claro. Já quando se é obrigado a dizer algo que não é o que realmente se pensa, quanto mais rebuscada e tortuosa a linguagem, melhor.
É o que nos vem à mente, de imediato, quando se lê, no cartapácio de 1.800 páginas, em dois volumes, que constitui o relatório final da CPI dos Correios, o trecho sobre o presidente Lula e o mensalão - cuja existência o documento confirma, sem eufemismos nem circunlóquios. "O mensalão", escreveu singelamente o relator Osmar Serraglio, do PMDB paranaense, "foi uma realidade."
E Lula sabia? Teria ele autorizado ou, por outra, teria ele podido impedir que vicejasse o que o deputado definiu como "prática ilícita de cooptação política, financiada com dinheiro escuso de cofres públicos e privados (...), a degradação de um escambo imoral de favores, que teve importantes membros da classe política como protagonistas"? Constatada a realidade da ilicitude, nenhuma outra indagação poderia ser mais importante do que essa. Desde junho do ano passado, quando o então deputado Roberto Jefferson introduziu o neologismo mensalão no léxico político nacional e à medida que se empilhavam as evidências do suborno sistemático de deputados para servir ao governo, a questão mais explosiva era a da cumplicidade ou não do presidente com o esquema.
O relator ficou com a segunda alternativa, mas deixando uma brecha para que se deduza de seu parecer que ele poderia ter estancado a lambança. Na requintadamente obscurecida linguagem de Serraglio: "Como é de sabença, não incide, aqui, responsabilidade objetiva do Chefe Maior da Nação, simplesmente, por ocupar a cúspide da estrutura do Poder Executivo, o que significaria ser responsabilizado independentemente de ciência ou não. Em sede de responsabilidade subjetiva, não parece que havia dificuldade (grifo nosso) para que pudesse lobrigar a anormalidade com que a maioria parlamentar se forjava. Contudo, não se tem qualquer fato que evidencie haver se omitido."
Essa passagem sintetiza os insuperáveis limites que cercam toda apuração parlamentar de práticas de corrupção, como a protagonizada pelo PT, operada pela dupla Marcos Valério-Delúbio Soares, e reduzida pelo presidente da República, numa estranha entrevista em Paris, a mero crime eleitoral - o uso de caixa 2 -, com a atenuante de se tratar, segundo ele, de algo feito "sistematicamente" no País. A rigor, o resultado de uma CPI é uma conta de chegar. Ali, a busca da verdade objetiva sofre os efeitos tanto da preocupação da maioria dos seus integrantes de tirar proveito eleitoral dos holofotes da mídia quanto dos cálculos de conveniência de governistas e oposicionistas - que se traduzem ora em arreglos, ora em confrontos que pouco elucidam.
Encarado com filosófica resignação, o Relatório Serraglio - que dificilmente será aprovado como veio - pode ser comparado ao proverbial copo meio cheio, meio vazio. Os seus pontos fortes são o desmascaramento da farsa petista dos recursos não contabilizados; o pedido de indiciamento do ex-ministro José Dirceu, que "estava a par de todos os acontecimentos e coordenava as decisões, junto com a diretoria do PT", e do seu então colega Luiz Gushiken, acusado de tráfico de influência e corrupção ativa, entre pelo menos 135 citados; a identificação do Fundo Visanet (gerido pelo Banco do Brasil), e das empresas Brasil Telecom, Usiminas e Cosipa, como fontes do valerioduto.
Os seus pontos fracos são - além da "absolvição" de Lula - a omissão do seu filho, Fábio Luis, no trecho de quase 300 palavras dedicado ao polêmico investimento de R$ 5 milhões da Telemar (de que participam os fundos Petros e Previ) na pequena empresa GameCorp, de que Fábio é sócio; a menção de apenas 19 deputados envolvidos no mensalão (porque se desistiu de investigar outros); e o silêncio sobre a falta de iniciativa da comissão de quebrar os sigilos de algum parlamentar. Decerto se deveria ir mais fundo e mais longe na devassa do mensalão. Sirva de consolo que o relatório tenha rebatido o chorrilho de mentiras que o PT e os seus cúmplices quiseram impingir à opinião pública desde a hora zero do escândalo sobre a natureza de seus malfeitos.