Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, março 30, 2006

MIRIAM LEITÃO No hay futuro

 

O GLOBO

O que aconteceu no Brasil nos últimos dez meses foi avassalador. O governo Lula não caiu, mas foi desmontado. Caíram todas as figuras fortes. O PT perdeu uma lista impressionante de quadros. E, mesmo assim, quem circula em Brasília não nota sinal de que haja uma reflexão em curso no governo sobre o significado e as lições dos acontecimentos. Toda a explicação é que as acusações são parte da guerra política.

A crise poderia nos fazer melhor, mas há pouca esperança de que isso ocorra. Na época da hiperinflação, aqueles números gigantescos anunciados todo mês de 30%, 40% ou mais, por mês, foram amortecendo nossas exigências. Quando um mesmo número se repetia por três meses, algum ministro comemorava, dizendo que a inflação estava estabilizada, como se alguma economia pudesse se equilibrar nesses píncaros. Era a banalização do mal. O Brasil se acostumara com o absurdo.

Hoje, na política, vive-se isso e só falta alguém dizer que a corrupção não aumentou de um mês para o outro, portanto está estabilizada. Há hoje uma banalização do escândalo. A longuíssima leitura do relatório da CPI dos Correios foi acompanhada até um certo tempo, depois as pessoas decidiram cuidar da vida. O cidadão já se perdeu no meio das denúncias lançadas de lado a lado. Perguntei ao deputado Gustavo Fruet o que ele, como cidadão, sentia ao fim de dez meses de CPI. Ele respondeu com espantosa sinceridade:

— Fica a impressão de que a política hoje virou uma guerra de quadrilhas.

É isso que o cidadão começa a pensar realmente. Se o sofrimento não serviu para nada, apenas para que houvesse uma escalada de mais denúncias, o que se pode concluir? Tenho medo de pensar que o brasileiro pode acabar concluindo que, se os políticos são todos iguais, a democracia não vale o preço pago por ela. Só a Câmara custa R$ 2,5 bilhões por ano. E isso só para falar no mais mensurável dos preços.

Os escândalos não serviram, sequer, para se aprovarem algumas regras que tornem mais transparentes as prestações de contas das campanhas políticas. Em muitos países, os políticos estariam agora em penitência, atrás de formas de expiação do malfeito. Os nossos estão entretidos em preparar o próximo golpe, a próxima armação contra o mais novo inimigo, a bola da vez. Ao final, quando todos forem atingidos, qual será o passo seguinte?

No discurso de despedida, o ex-ministro Palocci falou que o Brasil, terra do homem cordial, tem uma tradição de "oposições ferozes e pactuações sempre recusadas". Segundo Palocci, "nossas instituições estão cravadas de rancores".

Quando o ouvi dizer isso, confesso ter sido acometida pelo feio sentimento de inveja. Tive inveja dos espanhóis e seu Pacto de Moncloa, com o qual esquerda e direita, lúcidas e patriotas, construíram o caminho que os levou à modernidade. Juntos, políticos adversários construíram um pacto que curou as velhas feridas de uma longa ditadura implantada após o horror da guerra civil.

O PT foi um opositor feroz e implacável. Transformava a derrota eleitoral em rancor incurável. Palocci, quando era apoiado pela oposição, era exemplo de uma inédita chance de convivência civilizada entre contrários. A chance acabou esta semana. Ficaram apenas os maus modos na política. O ex-ministro Palocci, nos próximos dias, vai se afundar ainda mais nos círculos do Inferno de Dante, depondo ou sendo indiciado. O que ele foi acusado de fazer não é aceitável, e uma autoridade tem explicações a dar quando surge uma suspeita dessa dimensão. Mas a tragédia não é apenas pessoal, é política. O país levou anos para formar um quadro como Antonio Palocci. Ele não fez pouco: pegou uma economia em crise de confiança, num partido cujo pensamento econômico era uma geléia geral, e a levou a uma coleção notável de bons números. Ele conseguiu porque olhou para trás e viu que certos princípios econômicos não têm ideologia, certos passos precisavam dos passos seguintes na mesma direção. O avanço pode ser medido agora de uma forma simples: imagine Pedro Malan caindo estrepitosamente a sete meses das eleições de 2002. O que teria acontecido com a economia brasileira? Agora houve apenas um certo mau humor no mercado, mas não uma crise.

O país avançou, mas não entendeu sequer a natureza dos avanços. PT e PSDB comungam vários projetos. A política econômica do PSDB foi mantida pelo PT. O Bolsa Escola, que nasceu com um pé no PT e um pé no PSDB, virou o Bolsa Família no PT, que não será revogado pelo próximo governo, seja qual for. Será apenas aperfeiçoado. Eles se parecem hoje em vários pontos, mas se dividem como inimigos polares. A conclusão que ouvi de alguns políticos petistas é que tudo o que está acontecendo é culpa do PSDB, que estaria tentando destruir Lula. Não vêem seus próprios erros.

Gustavo Fruet acha que, a despeito de tudo, houve avanço: o país sabe hoje o que não sabia antes. Saber mais é sempre melhor do que não saber. Dez meses depois, acumulam-se os valores dos contratos glosados nos Correios, os desvios travestidos de gastos de publicidade, o dinheiro do caixa dois do PT de origem desconhecida, o pagamento ao publicitário da campanha presidencial e as novas denúncias do relatório. Quando se soma tudo na máquina de calcular, é inevitável chegar a uma conclusão vergonhosa: o escândalo do Collor custou mais barato. E, em seguida, o país avançou.

Certa vez, numa reportagem para televisão feita durante a crise argentina, eu perguntei a uma mulher numa passeata por que ela marchava. Ela ficou gritando no microfone: "No hay futuro, no hay futuro." Tenho pensado muito nessa mulher nos últimos dias. Me soa hoje como um alerta sobre nós mesmos.


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