"Nosso negócio é conteúdo"
O novo presidente da Disney fala de
seus planos para a companhia e de
como a tecnologia está mudando
o mundo do entretenimento
Carlos Graieb
Bob Iger assumiu a presidência da Disney, em outubro de 2005, em circunstâncias difíceis. Um grupo de acionistas liderado por Roy Disney, sobrinho de Walt Disney, o fundador da companhia, atacava fortemente o time de executivos do qual Iger fazia parte. Além disso, seu antecessor no cargo, o combativo Michael Eisner, havia emitido sinais contraditórios a seu respeito: às vezes o elogiava, às vezes dava a entender que ele não tinha as qualidades necessárias para dirigir uma empresa-símbolo da cultura e do capitalismo americano. Em seis meses de gestão, Iger conseguiu reverter esse quadro. Pôs fim à guerra com os acionistas e mostrou que pretende livrar-se da sombra de Eisner. Ele firmou uma parceria inédita com Steve Jobs, inventor dos computadores Apple, para oferecer programação em iPods. Em seguida, novamente em negociação com Jobs, comprou os estúdios Pixar, responsáveis pelos maiores sucessos da animação recente. O mercado respondeu aos lances de Iger: as ações da Disney subiram desde que ele assumiu. Adepto da diplomacia e da fala mansa, o executivo de 55 anos, que começou sua carreira apresentando boletins do tempo na televisão, encontrou-se com VEJA em Buenos Aires para a seguinte entrevista.
Veja – A Disney é hoje um enorme conglomerado de empresas que inclui parques, estúdios de cinema e de animação, canais de televisão aberta e paga, uma divisão de produtos como roupas, brinquedos e aparelhos eletrônicos. Qual é a cola que mantém todas essas peças unidas?
Iger – Há dois modos de gerir um conglomerado. Você pode encará-lo como uma holding, uma controladora de empresas independentes. Ou pode integrar o negócio. A Disney está definitivamente no segundo grupo. Nosso objetivo é criar entretenimento de qualidade voltado para a família, e perseguimos esse objetivo mesmo quando a marca Disney não está logo à vista. É essa a filosofia que alimenta a ESPN, que é um canal de esportes, a ABC, que cria programas de televisão como Lost e Desperate Housewives, ou os estúdios que fazem nossos desenhos animados. Acredito, além disso, num estilo de administração agressivo, que visa a manter apertados os laços entre as nossas várias divisões. Todas elas têm de se adaptar a três prioridades estratégicas, que são o investimento em criação, a aplicação de novas tecnologias e a busca de expansão global. As empresas podem ter suas "subprioridades", mas não podem jamais se esquecer desse direcionamento geral.
Veja – Qual o negócio central da Disney?
Iger – Criar conteúdo. Esse é meu objetivo número 1. Pelos próximos cinco anos, uma enorme fatia de nossos recursos vai ser usada para fomentar a criatividade nessa empresa. Acredito que o futuro será das companhias que possuírem marcas fortes e investirem em criações de qualidade. Os consumidores têm hoje tantas escolhas que vão gravitar naturalmente em torno de produtos que são mais conhecidos e têm qualidade comprovada. A boa qualidade e a qualidade apenas mediana determinarão a diferença entre sobreviver e morrer. Essa é minha aposta.
Veja – Nos últimos dez anos, os desenhos animados da Disney perderam parte do encanto para os jovens. Por que isso aconteceu?
Iger – A passagem das técnicas tradicionais para as técnicas digitais de animação é parte da resposta, mas não a resposta inteira. Já passei muito tempo tentando decifrar o enigma, e a verdade é que não consegui. Então decidi olhar para a frente, em vez de ficar obcecado com o que já aconteceu. Disney e animação são palavras conjugadas. Para a Disney, é vital que seus desenhos sejam fortes. Estamos falando de filmes que, quando bem-sucedidos, viram parte da cultura. Branca de Neve, Cinderela, O Rei Leão, Toy Story são títulos que sobrevivem por gerações. Igualmente importante, um sucesso na animação tem reflexo em vários negócios, dos parques de diversões ao licenciamento de marcas. Então, é preciso que nosso departamento de desenhos animados esteja em sintonia com o tempo e transbordando de inventividade. Talento desse tipo é difícil de encontrar, não cresce em árvores. A equipe da Pixar, com Steve Jobs e John Lasseter à frente, já demonstrou ter a energia necessária. Esse é o motivo por que gastamos alguns bilhões de dólares em ações para comprar os estúdios. Pense em Toy Story, em Monstros S.A., em Procurando Nemo. Eles fazem o melhor trabalho de animação da atualidade.
Veja – A compra da Pixar não foi seu único negócio com Steve Jobs. Vocês fizeram um acordo pioneiro para distribuir séries de televisão como Lost para iPods, via internet. Como novas tecnologias desse tipo vão mudar a vida de empresas como a Disney, cujo negócio é criar conteúdo?
Iger – Se você combinar todos os novos meios de distribuição de informações, como a internet, com todos os novos aparelhos que as pessoas possuem, como o iPod e o celular, a conclusão é que os consumidores nunca tiveram tantas oportunidades para consumir informação e tanto poder para decidir como, quando e onde querem fazê-lo. Diante disso, você pode assumir uma atitude defensiva, negando-se a oferecer seus produtos em novos formatos, ou pode abraçar as novas oportunidades. O maior risco que podemos correr como empresa é lutar para manter o status quo.
Veja – É verdade que o senhor tentou abortar as séries Lost e Desperate Housewives, que acabaram se tornando os maiores sucessos recentes da rede ABC?
Iger – Não, isso não é verdade. Eu sempre apoiei as séries. Lost foi o piloto mais caro que a ABC já produziu. Se eu não apoiasse a idéia, ela nunca teria se concretizado. O primeiro capítulo foi um dos mais extraordinários já feitos na televisão. O que é verdade é que eu considerei o programa arriscado. O enredo é complicado e tortuoso. Se seria um sucesso ou não, era uma incógnita. O mesmo vale para Desperate Housewives.
Veja – Quando a Disney fala em transmitir séries para iPods, parceiros tradicionais como as afiliadas de televisão ou os produtores de DVDs se assustam e logo pensam que vão perder receita. Como lidar com essa resistência?
Iger – Eu respeito esses parceiros. Eles foram importantes para nós e continuarão sendo. Mas não podemos ignorar o consumidor. Ele vem primeiro, e não podemos exigir que se preocupe com as velhas regras de nosso negócio. Meu esforço é fazer nossos parceiros entender que uma revolução está em andamento. E, se as empresas que trabalham em setores tradicionais – como os cinemas, por exemplo – souberem se atualizar do ponto de vista técnico, elas não têm por que temer as novidades.
Veja – A pirataria, nas ruas ou na internet, é um grande problema para quem produz entretenimento. Qual a estratégia da Disney para combatê-la?
Iger – Para vencer a pirataria é preciso agir, e não ficar na defensiva. Sim, temos de reforçar as leis, melhorar as barreiras tecnológicas contra roubos e informar as pessoas de que pirataria é crime, mas isso não basta. O que vai nos fazer vencer a batalha é oferecer produtos por um preço justo, no formato tecnológico que as pessoas querem. Desde que lançamos Lost e Desperate Housewives em versão para iPod, 4 milhões de downloads foram feitos. Isso significa que as pessoas estão dispostas a pagar por conteúdo legítimo, associado a tecnologias que proporcionem conveniência e mobilidade. Antes de fazermos isso, tudo o que havia era o roubo. Agora existe o roubo, e também o contorno de um mercado legal. Então eu digo: não tenha medo, disponibilize o seu conteúdo.
Veja – As relações com a Pixar quase se romperam porque Steve Jobs e Michael Eisner, seu antecessor na presidência da Disney, não se entendiam. O que o senhor fez para reconquistar Jobs?
Iger – Comecei a conversar com Jobs um ano atrás. Adoro aparelhos eletrônicos, tenho todas as novidades, e no começo conversávamos sobre tecnologia. Então surgiu a idéia do Video iPod, que receberia as séries da Disney. Ao trabalhar nesse projeto, desenvolvemos um vínculo de confiança e respeito. Descobrimos que um ia com a cara do outro. E começamos a discutir a compra da Pixar, que nem havia sido cogitada no início. É claro que foi complicado, pois precisávamos definir o preço e inúmeras outras circunstâncias, mas tínhamos uma boa base para conversar.
Veja – Jobs é considerado um dos homens de negócios mais brilhantes da atualidade. Tornou-se acionista da Disney e integrante de seu conselho administrativo. Como será tê-lo por perto?
Iger – Steve é um sujeito inspirador e nossa relação é produtiva. Ele será um grande conselheiro para mim e para a companhia.
Veja – Por quase toda a carreira, o senhor foi o braço-direito de executivos de personalidade muito forte, como Tom Murphy, da ABC, e Eisner, da Disney. Como sobreviver nessas circunstâncias?
Iger – Dinheiro e poder são importantes, mas não bastam se não houver prazer. Eu gosto muito do universo em que desenvolvi minha carreira, não tenho medo do trabalho duro, e isso foi essencial. Mas, no ambiente das grandes corporações, onde o jogo político é pesado, a paciência também é extremamente importante. Eu, de alguma forma, consegui mantê-la. Atravessei um processo de sucessão duríssimo, com a sombra de Eisner sobre mim e um ambiente interno conturbado na empresa, mas não perdi a cabeça. Não poderia estar mais feliz com o que conquistei.
Veja – Eisner é conhecido por ser duro, até mesmo ríspido. Vocês ainda se falam?
Iger – Sim, mantemos contato. Quando existe respeito, não importa se a pessoa é dura ou amigável. Eisner sempre foi digno de respeito. Não faria o trabalho que faço sem seus ensinamentos quanto ao valor da marca Disney e quanto ao funcionamento de áreas que eu desconhecia, por ter me formado na televisão, como a dos parques temáticos e a do cinema. Ele foi generoso ao me transmitir esse tipo de conhecimento.
Veja – Nos últimos meses da gestão Eisner, Roy Disney liderou uma rebelião de acionistas. Ele interrompeu o ataque depois que o senhor assumiu. Como conseguiu apaziguá-lo?
Iger – Todos os conflitos internos em que nos envolvemos foram muito prejudiciais. Gastamos uma energia enorme para lidar com eles. Então, uma das minhas prioridades ao me tornar presidente foi costurar um acordo de paz que era do meu interesse e do da companhia. Reconhecemos o peso do nome Disney, que Roy carrega. Reconhecemos o legado da família que fundou a empresa. Então é justo que ele tenha um escritório na empresa, um assento no conselho mais um cargo honorário.
Veja – Quando se fala na Disney, tradição é uma palavra importante. Qual o peso que ela tem?
Iger – É importante respeitar o passado, mas não reverenciá-lo. Quando reverencia o passado, você se escraviza. O segredo está em apreciar o legado de quem criou uma grande empresa, entender quais foram os ingredientes cruciais para o sucesso e carregá-los para o futuro, sem permitir que sejam obstáculo para as transformações necessárias.
Veja – O preço das ações da Disney atingiu seu pico no ano 2000. Eram mais de 43 dólares por cota. Hoje o valor está em torno dos 29 dólares. É possível retornar àquele nível recorde?
Iger – Não me arriscaria a prever. Aqueles eram outros tempos. Havia a explosão da internet, que criou um enorme aumento na publicidade para empresas de comunicação. E não havia ainda o fantasma do terrorismo. Tenho certeza de que o valor de nossa empresa crescerá ao produzir bom conteúdo – mais Toy Stories, mais Reis Leões, mais Losts. Mas não vou reclamar se o mundo colaborar – se houver mais paz e segurança e uma economia em crescimento constante.
Veja – O senhor diz que a expansão global da Disney é uma prioridade. Quais são os alvos iniciais?
Iger – É preciso equilibrar o investimento entre mercados maduros e mercados emergentes. É uma grande tentação jogar as fichas nos mercados novos, por causa do potencial e da efervescência. Mas a verdade é que países desse tipo demandam muita paciência e não são fáceis de abordar. Há problemas estruturais, incertezas econômicas, e por aí afora. Por isso, mercados maduros como o japonês ou o europeu, que não são tão excitantes à primeira vista, oferecem mais oportunidades a curto prazo. Diria que nos próximos cinco anos vamos destinar a eles a maior fatia de nossos recursos, sem esquecer de países como Rússia, Índia, China e Brasil – que é nosso mercado mais vigoroso na América Latina. Eles também estão nos nossos planos qüinqüenais.
Veja – Vocês abriram recentemente um parque de diversões em Hong Kong. Os chineses gostam do Mickey?
Iger – O nível de satisfação dos visitantes da Disney de Hong Kong, segundo nossas pesquisas, é o mais alto que já obtivemos em nossos parques. Então posso dizer que sim, eles gostam do Mickey. Como em todos os outros parques que abrimos fora dos Estados Unidos, esse vem nos demonstrando a necessidade de atentar para as peculiaridades locais. Tivemos, por exemplo, de redesenhar todo o nosso serviço de alimentação, porque as pessoas naquela área dedicam um tempo comparativamente longo às refeições. Como não havia rodízio entre as mesas, as filas cresceram. Apesar de viverem num país com mais de 1 bilhão de habitantes, os chineses odeiam filas no restaurante.