Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 29, 2006

Usurpação entre Poderes

EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO
 
Usurpação entre Poderes

Na história da República não se tinha conhecimento de interferências de atuação e muito menos de usurpação de funções entre Poderes de Estado. É verdade que nos períodos de exceção constitucional e autoritarismo, como o da ditadura militar, usurpação entre poderes existia - só que, no caso, era o Executivo que, pela força, açambarcava as funções do Legislativo, legislando por meio de decretos-leis, ou do Judiciário, interpretando a Constituição da forma que lhe convinha e impedindo a livre atuação dos tribunais. Da parte do Judiciário, sempre houve a recusa de imiscuir-se em questões de competência legislativa, por mais freqüentes que fossem as tentativas de parlamentares e partidos políticos, inconformados com decisões interna corporis das Casas Legislativas, de modificar tais deliberações pela via judicial. E neste sentido o Supremo Tribunal Federal (STF) sempre se mostrara firmemente avesso ao acatamento de tais iniciativas, e muito menos disposto a conceder liminares em seu favor.

Ilustrações desse respeito do Judiciário às atribuições constitucionais exclusivas - e, portanto, à independência - do Legislativo estão em dois votos exemplares com que o então ministro do STF, Paulo Brossard, indeferiu, em 1992, mandados de segurança em favor de deputados federais em processo de cassação por quebra de decoro parlamentar. Eis alguns tópicos das decisões, por si esclarecedores: (MS n. 21.443-1 de 22/04/92): "... se é certo que só o Judiciário julga crimes e a seus autores e aplica pena criminal, é igualmente certo que só a Câmara julga a ocorrência da falta de decoro parlamentar e aplica ao faltoso a sanção adequada, que nada tem com a sanção penal; são fatos de natureza distinta, cominados com sanções igualmente distintas." (MS n. 21.360-4 de 12/03/92): "Cabendo à Câmara, ou ao Senado, e a ninguém mais, decretar a perda do mandato por falta de decoro parlamentar, é natural que à entidade que possua essa competência, privativa e exclusiva, compita exercer os atos necessários ao pleno e regular desempenho da atribuição, sem a interferência de quem quer que seja, em suma, fazer a construção adequada às suas finalidades. Ao Judiciário não compete interferir no exercício dessa competência que a Constituição conferiu a outro Poder."

Mas isso mudou, substancialmente. Só na presente crise do "mensalão", já houve 19 medidas liminares da cúpula do Judiciário brasileiro, interrompendo ou impedindo o trabalho de investigação das CPIs, seja pelo acatamento a filigranas jurídicas com características típicas de chicanas, seja pela defesa de argumentos que se mostram verdadeiro escárnio à lógica e ao senso comum. Ilustra bem, esse último caso, o que está contido no despacho com que o ministro Eros Grau prontamente impediu, na noite de segunda-feira, que na manhã seguinte fosse ouvido, na CPI dos Bingos, o presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, que passou a ser investigado depois que assumiu o pagamento de uma dívida de R$ 29,4 mil que o presidente Lula tinha com o PT. A "generosidade" de Okamotto - que já conseguira suspender no STF a quebra de seus sigilos bancário, fiscal e telefônico - virou alvo da CPI dada a suposta existência de irregularidades no uso de recursos do Fundo Partidário.

O ministro Grau disse em seu despacho que a CPI aprovou um requerimento para realização de acareação entre Okamotto e o economista Paulo de Tarso Venceslau, que acusa o presidente do Sebrae de ter comandado um esquema de caixa 2 nas prefeituras do PT. Como, para o ministro, o ato da CPI que convocou Okamotto previa apenas um depoimento, concluiu: "No caso, há flagrante desvio de finalidade e, por isso mesmo, afronta à legalidade." Quer dizer, então, que haverá uma substancial diferença de "finalidade" entre um depoimento e uma acareação, em um mesmíssimo processo investigatório? E tal "diferença" bastará para obstar uma investigação parlamentar de suma importância - tanto para o interesse público como para a imagem pública dos próprios suspeitos?

Por essa e muitas outras não resta dúvida de que a continuidade da intromissão indevida do Judiciário em atribuições legítimas - e exclusivas - do Legislativo acabará levando o País a um impasse entre Poderes de Estado, o que significa crise institucional, de conseqüências sempre gravíssimas.

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