Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Míriam Leitão - Conluio do silêncio



PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
2/1/2008

Metade da população brasileira não havia nascido quando, há 28 anos, dois italianos foram presos no Brasil e entregues à repressão argentina para serem torturados até a morte. Por que um passado tão velho ainda assombra o país, como aconteceu no final de ano? Porque nunca foi investigado aqui e porque as instituições que se envolveram nos crimes, ainda hoje, acham que fizeram certo.

A frase de um dos brasileiros acusados, Carlos Alberto Ponzi, "fiz o que achava certo, combati os inimigos do meu país", seria apenas uma frase esquisita, não fosse esta a convicção das Forças Armadas brasileiras. Todas as notas distribuídas pelo Exército nos últimos anos sobre o tema seguem sempre esta mesma linha de raciocínio. Acham que fizeram o que estava certo.

No ano passado, quando o governo divulgou o livro "Direito à memória e à verdade", sobre os desaparecidos políticos, o ministro Nelson Jobim fez um discurso espalhafatoso:

- Não haverá indivíduo que possa reagir e, se houver, terá resposta.

Em resposta, o indivíduo general Martins Enzo Peri, comandante do Exército, supostamente subordinado ao ministro Jobim, convocou o alto comando e emitiu uma nota de reação em que dizia que "fatos históricos têm diferentes interpretações". E nem mesmo admitiram que, no passado, erraram. "Não há exércitos distintos. Ao longo da História, temos sido o mesmo Exército de Caxias, referência em termos de ética e moral, alinhado com os legítimos anseios da sociedade."

Em dezembro, em entrevista que fiz com Nelson Jobim, perguntei sobre esse episódio e ele disse que o fato não havia acontecido, não havia ocorrido nenhuma reação militar. Típica resposta do Brasil: melhor varrer para debaixo do tapete, fingir que nunca houve o que houve de constrangedor, camuflar os conflitos em nome do mito da cordialidade brasileira.

No governo Lula, aquele foi o segundo episódio. No primeiro, a nota do Exército justificou a criação do aparato de repressão e as torturas. Para não enfrentar o problema, o governo fingiu acreditar que a nota tinha sido escrita e divulgada pelo departamento de comunicação do Exército sem conhecimento dos superiores.

O Brasil tem se esmerado em distribuição de dinheiro público a antigas vítimas da repressão política, mas nunca quis exigir dos militares e do velho SNI as informações necessárias para o país reconstituir sua história e refletir sobre ela. Os governos civis preferem pagar, mas nunca investigar. Já são bilhões de reais a esta altura, e serão muito mais. Na distribuição de dinheiro das indenizações, o Brasil tem sido discriminatório, como em tudo o mais: alguns ganham quantias extravagantes; outros, valores modestos. Alguns receberam indenizações justas e que carregam o sentido da reparação necessária após um período em que o Estado cometeu crimes. Outros recebem mordomias em tudo discutíveis e pensões que só oneram e tornam mais injusto o sistema previdenciário.

Mas o que o Brasil tinha que fazer nunca fez: investigar o que houve, abrir os arquivos, oferecer ao público - e sobretudo às famílias atingidas - as informações sobre as circunstâncias das mortes e onde foram enterrados os corpos.

Governo após governo, 23 anos depois do fim da ditadura, a resposta é sempre a mesma: a lei da anistia perdoou a todos, de ambos os lados, e, portanto, são todos ininputáveis. Há aí um equívoco básico: o fato de os torturadores e assassinos terem o direito legal de escapar da Justiça não significa que os fatos, os documentos, as informações devem continuar escondidas e sonegadas.

Dois fatos dos últimos dias de 2007 mostraram o quanto o Brasil está atrasado no que é realmente relevante: a busca das informações. O governo do Paraguai publicou na internet as informações disponíveis sobre a repressão do governo Stroessner. A Justiça italiana expediu ordens de prisão contra acusados em vários países da região que participaram do conluio sul-americano para prender e matar os inimigos dos regimes ditatoriais.

A Operação Condor foi apenas um dos desdobramentos dos crimes cometidos pelos militares no poder. Está reaparecendo porque alguns desses crimes foram cometidos contra cidadãos europeus.

Agora, diante do pedido da Justiça italiana, o ministro Tarso Genro admitiu que pode investigar, apesar de não poder punir, pois a lei não permite extradição de brasileiros, os crimes foram apagados pela Lei de Anistia e, além de tudo, já prescreveram. Mas investigar é possível, neste específico caso dos italianos. É patético que só se pense nisso diante de uma ação da Justiça italiana. E ainda mais patético que o Paraguai esteja à nossa frente na abertura dos dados.

Esse passado não morrerá. Está condenado a assombrar a História do Brasil pela omissão dos governos civis, incapazes de levar as Forças Armadas a reconhecer seu erro e libertar as informações prisioneiras do conluio do silêncio. Distribuir dinheiro público nas indenizações é discutível na maioria dos casos. Recuperar as informações era fundamental. Convencer as Forças Armadas de que aquele passado é um desvio inaceitável na história da instituição era indispensável. Mas os governos civis preferiram o caminho mais fácil: mandar a conta para o Tesouro e distribuir privilégios.

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