O Globo |
16/1/2008 |
Implantar o ciclo completo de polícia nos estados, e não necessariamente unificar as polícias civil e militar, parece ser a melhor maneira de reorganizar a segurança pública do país. Da maneira como está engessado pela Constituição, o funcionamento do sistema repressivo-penal é falho, porque a polícia militar faz a parte ostensiva e preventiva do ciclo de trabalho, e a civil faz a investigativa, judiciária e repressiva. Existe também a necessidade de passar para as esferas estadual e municipal alguns aspectos que são regidos pela legislação federal, como o trânsito ou as contravenções penais. Farlei Martins Riccio de Oliveira, professor e pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade Candido Mendes, ressalta que a Polícia Federal já realiza o ciclo completo de polícia "no exercício de suas atribuições constitucionais e legais", e talvez por isso obtenha tantos bons resultados. Em outros países, são exemplos bem sucedidos de polícias que realizam o ciclo completo os Carabineri da Itália, a Guarda Civil Espanhola, a Gendarmerie da França e os Carabineiros do Chile. Dois ex-secretários de segurança do Rio de Janeiro, Josias Quintal, ex-deputado federal, e Marcelo Itagiba, deputado federal, apresentaram emendas constitucionais para implementar o ciclo completo de polícia nos órgãos estaduais, modificando o art. 144 da Constituição Federal. Itagiba propõe que seja preservada a competência da União de legislar sobre os crimes, mas que se conceda aos estados, e a municípios com mais de 200 mil habitantes, a prerrogativa de elaborar leis destinadas a punir as contravenções e condutas anti-sociais. Ele destaca que, em Nova York, citada como exemplo de cidade que conseguiu controlar a criminalidade, a polícia municipal atua nos três estágios da legislação: tanto nas posturas municipais quanto nas contravenções, e até mesmo na própria lei penal. Aqui no Brasil, a lei penal e a lei de contravenções penais são federais, e as posturas municipais não tratam das questões do dia-a-dia do cidadão, mas de uma série de normas. "O município deveria poder exercer o seu papel de polícia com a guarda municipal, que passaria a ter atribuição para reprimir as pequenas infrações". Ele cita um exemplo de nosso dia-a-dia: urinar no meio da rua hoje é um crime federal, a pessoa, se for presa, o será por atentado ao pudor, que vai levar anos para ser julgado. "Se fosse uma postura municipal, um juiz poderia aplicar pena alternativa, como serviços à comunidade, multa pecuniária ou a detenção por um período curto, em caso de reincidência", propõe o deputado. O segundo estágio seria a estadualização da lei de contravenções penais, que ficaria a cargo da Polícia Militar, deixando para o crime a Polícia Federal e a Polícia Civil. Para Itagiba, "o sistema repressivo-penal brasileiro precisa sofrer uma mudança. Se o prefeito tem a competência para aplicar multas e regulamentar o sentido das ruas, por que não tem para definir quantas pessoas podem andar num carro ou na motocicleta, ou proibir de andar sem camisa nos ônibus?", indaga Marcelo Itagiba. O professor Romeu Machado Karnikowski, especializado em teoria de Estado e introdução à ciência política, é advogado dos policiais civis e militares no Rio Grande do Sul e está fazendo doutorado na pós-graduação de sociologia da UFRGS com uma tese sobre o papel dos oficiais da Brigada Militar no que classifica de "processo de policialização da corporação". Ele mostra que o problema tem raízes históricas, e começou na década de 1930, quando a segurança pública era determinada pelos estados, e cada um tinha sua força militar própria, como a poderosa Força Pública de São Paulo e a Brigada Militar no Rio Grande do Sul, "que não participavam da segurança pública. A única função das milícias estaduais era a de ser exército estadual". Mas a Revolução de 1930 mudaria essa situação, sobretudo depois da Revolução Constitucionalista de 1932. "Essa revolução mostrou a potência e a importância de uma força militar estadual que dispunha de tanques, artilharia e aviação como a de São Paulo, que era muito poderosa", ressalta o professor gaúcho. A Constituição de julho de 1934 colocou as então poderosas forças militares estaduais com a denominação geral de Polícias Militares, na condição de forças auxiliares e reservas do Exército. Foi o começo do que o professor Romeu Karnikowski chama de "policialização" das polícias militares, um processo que ele acredita que ainda está em andamento. A partir de 1936, quando uma lei proibiu que as polícias militares tivessem artilharia, carros de combate e aviação de guerra, as forças militares estaduais somente tinham dois caminhos, comenta Karnikowski: serem extintas ou realizarem policiamento ostensivo, caminho pelo qual optaram, fazendo surgir os problemas - elas não sabiam fazer trabalho de polícia, que, para os seus respectivos corpos de oficiais, era considerado "desonroso". Esse processo acabou determinando "o desgraçado modelo dual de polícia em nosso país: uma polícia militar para vigilância ostensiva e uma civil para investigação, que eles adoram chamar de polícia judiciária", resume Romeu Karnikowski, sem que nenhuma das duas exerça por completo seu papel. "O problema é que no Brasil não temos polícias, mas meias polícias. Uma polícia eficiente tem que ter ciclo completo de polícia". Essa cisão somente favorece a bandidagem, e não se estabelece uma adequada e moderna profissionalização das carreiras policiais, afirma Karnikowski. |
Entrevista:O Estado inteligente
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