Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
sábado, agosto 11, 2007
Roberto DaMatta
Sem culpa e sem vergonha
O Brasil padece de uma indecisão entre a ética da casa, que privilegia parentes e amigos, e a da rua, que prevê a aplicação igualitária da lei. Enquanto essa confusão não for resolvida, a corrupção e a ambigüidade ideológica continuarão a reger a política nacional. E é o demonizado liberalismo que guarda o potencial de superar esse grave impasse
Alan Marques/Folha Imagem
José Dirceu depõe no Congresso, diante do deputado Roberto Jefferson, ambos personagens do mensalão: passaremos da política dos conchavos para a dos princípios?
No passado, a corrupção da política brasileira costumava andar de mãos dadas com a inflação. O resultado dessa combinação era a crise institucional – foi assim nos governos de João Goulart e Fernando Collor. Hoje, morto o dragão inflacionário e com o sistema aberto a uma maior competitividade, a corrupção, que, entre outras coisas, bloqueia a eficiência dos serviços públicos, surge em estado puro e remete a questões fundamentais. De onde vem, afinal, essa roubalheira institucionalizada que, como revela o governo Lula, independe de coloração ideológica e partido político? Seria ela o resultado das nossas origens como uma colônia semi-abandonada, povoada por degredados e gente capaz de tudo para subir na vida? Estaria ligada a um mero banditismo, pronto a ser sanado por uma polícia eficiente? Ou teria uma ligação profunda com um desenho institucional marcado pela proteção aos superiores, a ponto de lhes garantir impunidade quando praticam a corrupção político-partidário-administrativa?
No centro da corrupção à brasileira existe uma indecisão cultural (ou moral, se quiserem) entre duas éticas que operam em qualquer sistema social. A primeira é a ética particularista da casa, dos amigos e da família, que manda proteger, ignorar, relevar, condescender e perdoar o ofensor (corrente em sociedades tribais e arcaicas); a outra é a ética universalista da rua (ou do mundo público), que demanda, ao contrário, tratar com isenção ou igualdade, aquilatar a gravidade da ofensa, trazer a público o ofensor e punir adequadamente quem quer que tenha cometido o delito. Nosso problema, como a dinâmica da vida pública não cansa de mostrar, é que até hoje temos consciência dessa duplicidade, mas ignoramos solenemente as suas implicações. Assim, quando se trata dos outros, somos implacáveis e a eles aplicamos sem hesitar as normas universais do mundo da rua. Maximizamos a dimensão impessoal da ofensa e tratamos a pessoa como um indivíduo: um mero cidadão também sujeito à lei. Mas, quando são os nossos, eles são vítimas da imprensa, meros aloprados, ou crianças. Como sequer julgar o presidente do Congresso Nacional, se ele é nosso colega, amigo e nos favoreceu em inúmeras situações?
Tenho para mim que o intolerável e verdadeiramente enlouquecedor no Brasil atual não é o jogo de forças entre pessoas e leis, rotineiro em qualquer sistema, mas a manutenção daquelas duas éticas no campo do "político", justamente a esfera destinada a resolver a duplicidade. A coisa chegou a tal ponto que a palavra "política" passou a designar precisamente esse jogo amoral no qual a igualdade é sempre ultrapassada por pessoas que, desdenhando das leis, passam a controlá-las em vez de zelar por elas. Ou um ritual no qual os criminosos são acusados mas, quando são importantes, livram-se da pena porque têm comprovadas relações pessoais e partidárias com os donos do poder. Pior ainda, "política" passou a designar uma rotina de desfaçatez que é a manifestação mais patente de outro traço daquela duplicidade ética: uma extraordinária ambigüidade no que diz respeito a dois sentimentos que acompanham o rompimento da norma, a saber, a vergonha e a culpa.
Sociedades que atribuem responsabilidade moral a indivíduos autônomos e iguais têm padrões de moralidade claros e absolutos. Nelas, há uma consciência dominante de culpa que promove a auto-acusação, bem como a punição geralmente severa, com um foco claro na vítima. Já em sistemas coletivistas, nos quais a responsabilidade moral é ambígua e pode ser atribuída tanto a um agente individual quanto a relações e grupos (caso do Japão), predomina a vergonha. A culpa contrasta nitidamente com a inocência, mas a vergonha contém níveis de gradação, sendo relativa. Ou seja: a vergonha, ao contrário da culpa, depende do tipo de crime, de quem o pratica e também de suas motivações. Quando o crime é irreparável e atinge todas as nossas relações, a única saída é o suicídio de honra, a auto-execução que liberta tanto o ofensor quanto a sua família, partido ou segmento de suas faltas. É o que ocorre no Japão e foi o que aconteceu, no caso brasileiro, apenas no suicídio de Getúlio Vargas. Quando, por sua vez, a culpa é intolerável, o sujeito vai à televisão, pede perdão público aos seus concidadãos e aguarda o julgamento, como fizeram Ted Kennedy, Richard Nixon e Bill Clinton.
No Brasil, onde uma ética dúplice mistura tudo, há um dilema. Pois se houver o crime, mas ninguém for de fato investigado, como ocorreu com o mensalão, com os aloprados e, ao menos até agora, com os senadores Renan Calheiros e Joaquim Roriz, não há nem culpa nem vergonha. Ou há culpa mas não há aquela cota de vergonha suficiente para levar à cadeia. A culpa é interior; a vergonha, externa. A pessoa pode se sentir culpada mesmo que a sociedade a tome como inocente. Quanto à vergonha, se ninguém souber que eu roubei o dinheiro da prefeitura, tudo bem. Aliás, seria uma vergonha não roubar porque outro o faria. Na corrupção pública, a vítima é invisível, porque é uma coletividade. Não havendo vítima, não há, eis um outro ponto capital, reparação, daí a nossa proverbial impunidade. Assim, se eu rompo com as normas em nome do povo ou dos pobres, não há vergonha – ou muito menos culpa. Mas, se eu deixo de retribuir o favor que me foi feito pelo meu melhor amigo, se não defendi com vigor o parente ou colega ofendido, eu "morro de vergonha".
Nosso chamado corporativismo tem como base essas desculpas fundadas nos elos pessoais que até hoje nos recusamos a politizar. Não se trata apenas de "falta de vergonha", mas de vergonhas que são "sentidas" diferentemente dentro de um sistema que se reparte em múltiplas éticas. A vergonha que nos recruta como tropa de choque não é a mesma que sabe quem vai ganhar a concorrência. No caso da competição, não há vergonha e pode haver, no máximo, um tantinho de culpa; no caso dos amigos e padrinhos, a vergonha nos obriga a tomar uma atitude decisiva, que nos exime de toda culpa.
Quero crer que o moinho satânico do liberalismo (para lembrar a expressão com que o poeta William Blake caracterizou a Revolução Industrial) tem permitido não só enxergar melhor esses surtos e atos falhos aristocráticos – corporativos, tribais e arcaicos –, mas também promover uma consciência de repúdio que tem se manifestado em todas as esferas da sociedade. Pois, se existem competição e igualdade na economia, por que não haveria em toda parte? Penso que o liberalismo brasileiro, apesar de todos os seus defeitos, tem posto a nu essa confusão entre casa e rua, entre culpa e vergonha. Penso também que ele tem pressionado no sentido de que se passe da "política" como um campo do conchavo, do enriquecimento pessoal através do estado e das ambigüidades ideológicas, para a Política como um espaço de valores e princípios. A nossa corrupção se localiza precisamente, reitero, na indecisão ética. Se nela ficamos, corremos o risco de jamais resolver essa crise. Como seguir a lei se sabemos que os amigos jamais são presos? Como prender os amigos em nome da lei? A presença do dilema conduz a essa ausência de confiança tão deletéria no caso do Brasil.
Finalmente, distinguir a aplicação dessas éticas e refletir sobre as relações entre culpa e vergonha significa politizar, ou passar pelo crivo da racionalidade igualitária, os elos pessoais. Impossível, como estamos testemunhando, continuar com uma vida social na qual se aceita sem discussão que o mundo da casa nada tem a ver com o universo da rua. E que, na intimidade das alcovas e nos braços dos amigos, fica-se isento das responsabilidades do cargo e da moral vigente. Será preciso aproximar a casa da rua, o estado da sociedade, a culpa da vergonha, para que se possa promover uma real transformação de todo o sistema, liquidando um estilo de corrupção marcado por uma perversa ambigüidade.
Arquivo do blog
-
▼
2007
(5161)
-
▼
agosto
(461)
- Clipping de 31 DE AGOSTO
- Míriam Leitão - Fatos e efeitos
- Merval Pereira - O mensageiro
- Luiz Garcia - Crime, castigo & prevenção
- Eliane Cantanhede - Teatro do absurdo
- Dora Kramer - De togas muito justas
- Pressão não mudou voto, diz Lewandowski
- Êxito no fracasso Por Sérgio Costa
- Lewndowski teve um voto mutante
- O Senado de joelhos
- Burrice ou má-fé?
- Clipping de 30 de agosto
- "TENDÊNCIA ERA AMACIAR PARA DIRCEU", DIZ MINISTRO ...
- LULA E A MÍDIA Por Alberto Dines
- Dora Kramer - O Senado está nu
- Clóvis Rossi - De cães, elites e "povo"
- Eliane Cantanhede - Vários mundos, dois governos
- Merval Pereira - O futuro do PT
- Míriam Leitão - Os próximos passos
- Lewandowski diz que a tendência era “amaciar para ...
- Erroll Garner in Rome 1972: For once in my life
- Lucia Hippolito,A democracia está viva no Brasil
- ELIANE CANTANHÊDE Alma lavada
- Clipping de 29 de agosto
- Lula quer desvendar o truque
- Congresso do PT - em má hora
- Dora Kramer - O vigor dos fatos
- Clóvis Rossi - Os réus que faltaram
- Míriam Leitão - A moral do caju
- Merval Pereira - Nova chance
- A casa pelo corredor- Roberto DaMatta
- ELIO GASPARI
- Erroll Garner - Jazz 625 - Laura
- Além de não punir, PT ainda festeja seus acusados
- Clipping de 28 de agosto
- Arnaldo Jabor
- Luiz Garcia - Greves & mortes
- Míriam Leitão - O processo
- Merval Pereira - Sem anistia
- O presidente ?tranqüilo?
- Palavra de honra DORA KRAMER
- MAIS PRAGMATISMO NO MERCOSUL
- O dia em que Janene, agora processado pelo STF, co...
- Clipping de 27 de agosto
- FHC diz que PT, não povo, vai pedir reeleição de L...
- Oposição desconfia da promessa de Lula
- Eros Grau:Juiz não tem direito de antecipar voto'
- Antonio Sepulveda,Dialeto único
- Uma acusação "injusta"
- AUGUSTO NUNES SETE DIAS
- Miriam Leitão
- DANUZA LEÃO
- FERREIRA GULLAR
- ELIANE CANTANHÊDE
- CLÓVIS ROSSI
- Maior desafio do País é escolher bons dirigentes
- Mailson da Nóbrega
- Alberto Tamer
- Entrevista do economista José Roberto Mendonça de ...
- A herança bendita
- Celso Ming
- SONIA RACY
- João Ubaldo Ribeiro
- DANIEL PISA
- DORA KRAMER O foro não deu privilégio
- A entrevista de Lula no Estadão deste domingo
- Villas-Bôas Corrêa : O populismo das margaridas
- Eleição de 2010 não depende de crise, diz Serra
- Miriam Leitão Efeito no Brasil
- Celso Ming
- Dora Kramer Suprema informalidade
- FERNANDO GABEIRA
- A força do mensalão
- CLÓVIS ROSSI
- VEJA Carta ao leitor
- VEJA Entrevista: João Doria Jr.
- Lya Luft Ignorância e preconceito
- MILLÔR
- André Petry
- Diogo Mainardi
- Roberto Pompeu de Toledo
- O julgamento do mensalão
- Fotógrafo flagra diálogo de ministros do Supremo
- A Câmara vai instalar uma CPI para apurar o grampo
- Um em cada quatro brasileiros está no programa
- O pacote do governo contra o crime decepciona
- Quem é a enrolada Denise Abreu, da Anac
- O Conselho de Ética vai pedir a cassação do senador
- Atentado à liberdade de imprensa
- Desmando em fábricas ocupadas por radicais do PT
- 100 dias de Nicolas Sarkozy na Presidência
- Estrelas, constelações e galáxias no Google Sky
- A vida ao vivo na rede mundial
- Os novos aviões militares que voam sem piloto
- A expansão global dos cassinos
- Angioplastia e medicamentos evitam cirurgias
- Prefeituras européias investem na bicicleta
- O massacre dos gorilas no Congo
- Cidade dos Homens, de Paulo Morelli
- Possuídos, de William Friedkin
-
▼
agosto
(461)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA