Retorno do Estado ao papel de grande investidor da economia ainda é visto com certo descrédito pelo mercado
Irany Tereza, Nilson Brandão Junior e Agnaldo Brito
O processo começa a ser identificado como "reestatização branca" por uma parcela de especialistas. Mas é acompanhado com certo descrédito pelo mercado financeiro. Diante de declarações bombásticas como a do ministro das Comunicações, Hélio Costa, de criação de uma "golden share" (ação com direito a veto do governo em decisões empresariais) numa eventual fusão entre Telemar e Brasil Telecom, o mercado não acusa reações relevantes em seu melhor termômetro financeiro: a oscilação das ações em bolsa de valores.
O economista Armando Castelar, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - vinculado à recém-criada secretaria do governo federal de Estratégias de Longo Prazo -, explica que questões diferentes convergem hoje para a idéia do aumento da presença do Estado. "Com a troca do governo, houve uma troca de visões sobre o papel do Estado na economia." Ele reconhece que o aumento da presença estatal "eleva o risco de uso político, por definição".
"No atual governo, ganharam peso os que defendem um Estado mais intervencionista, mas isso não era inexistente anteriormente", diz Castelar, lembrando que, no governo Fernando Henrique, havia maior divisão de posições na administração pública.
O físico Luiz Pinguelli Rosa foi um dos formuladores da política energética do governo Lula e o primeiro presidente da Eletrobrás na gestão petista. De volta à UFRJ, onde dirige a Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Economia (Coppe), Pinguelli é um dos que acreditam que há mais fumaça do que fogo nas iniciativas estatizantes do governo.
Defensor da presença estatal, ele confirma que, na fase inicial do governo Lula, a intenção era a de que a Eletrobrás retomasse sua posição de ator principal do mercado de energia, que perdeu durante a gestão Fernando Henrique. O presidente tucano iniciou a privatização do setor elétrico com a passagem das distribuidoras de energia para a iniciativa privada. As geradoras estatais, na fila para a privatização, pararam de investir em novas unidades e começaram a ser licitados projetos de geração e transmissão.
"Esperava-se que a Eletrobrás assumisse um papel dinâmico, liderando obras, a exemplo da Petrobrás, no governo Lula. Na fase inicial, essa era a expectativa. Mas isso não foi adiante. Houve uma espécie de paralisia da estatal", diz Pinguelli, para quem o Estado só está de fato retornando ao papel de protagonista da economia na petroquímica, com a Petrobrás (que este ano comprou a Ipiranga e a Suzano Pet). "Até mesmo no setor aéreo deveria haver uma participação maior. Mas o (Milton) Zuanazzi (diretor geral da Anac), de avião, entende menos do que eu!"
Ele justifica sua defesa à participação estatal dizendo que o capital privado exige retorno de investimentos às vezes tão alto que inviabiliza projetos. Mas reconhece que há também nesta posição uma vertente política, de traçar estratégicas para a economia. " Há interesse do Estado em apontar em certas direções. O governo Vargas, época áurea da intervenção estatal, criou a Petrobrás. O governo Geisel, por exemplo, foi mais voltado à petroquímica e energia nuclear", cita, lembrando que hoje há investimentos estatais com uma espécie de disfarce privado.
"A golden share, cá entre nós, é um fingimento. O governo está presente hoje em muitas empresas, mesmo na telefonia, só que fraciona ações, com participação do BNDES e dos fundos de pensão, por exemplo, e não forma um grupo majoritário. Várias empresas de distribuição de energia do Nordeste são, de fato, públicas. O Estado só não pegou a Eletropaulo porque não quis, já que o BNDES tinha direito às ações. Os fundos de pensão das estatais, que são controladas pelo governo, participam das empresas. É um faz-de-conta. Em todos os países essa intervenção se dá de maneira diferenciada. Nos Estado Unidos, por exemplo, a presença do Estado na geração hidrelétrica é enorme."
POR BAIXO DO PANO
De outro lado, o embaixador e atual presidente do Instituto Fernand Braudel, Rubens Ricupero, reforça a crítica de que o governo Lula caminha rapidamente para ampliar a participação do Estado na economia. Liberal de formação, Ricupero avalia que o retorno da Petrobrás ao setor petroquímico, a participação da Eletrobrás nos investimentos do setor elétrico, a corrida da Transpetro para comandar a infra-estrutura de alcooldutos e o aumento dos gastos correntes são exemplos dessa reorientação.
"É uma postura sub-reptícia, não uma política assumida. O governo vem e diz ter um mandato e, então, diz: vamos fazer isso. É por baixo do pano. A política que se pratica não é a que se anuncia", afirma o embaixador. A intervenção estatal, aponta o ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, deve ocorrer apenas se não houver disposição privada para assumir os riscos do investimento.
Doutor em Economia e especialista em desenvolvimento e crescimento econômico, Samuel Pessoa, da Fundação Getúlio Vargas, destaca que deveriam ser mais bem consideradas as variáveis de longo prazo na escolha entre a provisão pública ou privada de utilidades públicas. "O setor público é menos eficiente do que o privado para prover esses serviços, o que produz no longo prazo elevação das tarifas; no entanto, o custo de capital do setor público é menor, o que caminha na direção de reduzir a tarifa."
Ele lembra que, em geral, quando o serviço é produzido pelo Estado ou por estatais, a tarifa não cobre todo o custo. "Uma parte do custo será paga por impostos gerais, isto é, pelo contribuinte. Conseqüentemente, as menores tarifas serão compensadas por maiores impostos. Dado que o Estado tem muitas outras prioridades, como elevar os investimentos em educação, parece-me que seria melhor que os marcos regulatórios fossem reforçados e essas atividades fossem entregues ao setor privado", pondera o economista.
Para Eduardo Bernini, economista e especialista em infra-estrutura, a "raiz do problema" está na ambigüidade do atual governo Lula, formado por duas visões antagônicas: uma que defende espaços para o setor privado na economia - principalmente em infra-estrutura - e outra que nega. A falta de clareza do governo é que abre espaços para avanços das empresas estatais, como a Petrobrás e a Eletrobrás, por exemplo. Bernini não acredita que isso seja uma orientação de governo, mas resultado da falta de uma visão clara sobre até onde o Estado vai e qual a missão do investimento privado.
Já Raul Velloso, especialista em contas públicas, acredita que essa tendência de ampliação da participação do Estado na Economia, como se observa neste momento, não é uma inovação do atual governo, mas quase um legado da República. "A vida normal dos governos no Brasil é a de seguir esta força estatizante, não há aí nenhuma inovação no governo Lula. Apenas segue a tendência histórica. Aliás, eles nunca esconderam isso."
Petroquímica
O setor nasceu no Brasil com a Petroquímica União, em São Paulo, no governo militar. Foi ampliado para o Nordeste e o Sul com apoio da Petrobrás e do BNDES. Na década de 90, a Petroquisa reduziu a participação em várias empresas. Agora, a Petrobrás retorna sob o argumento de organizá-lo em grandes empresas privadas.
Energia
Até 1995, quando começaram as privatizações no setor, a participação do capital privado na geração e de distribuição de energia elétrica era bastante limitada. Mas 80% da geração de energia continuou estatal. Desde 2003, o grupo Eletrobrás tem comprado participações minoritárias e participado dos leilões do governo.
Telecomunicações
A Telebrás foi criada em 1972, como uma holding estatal com 22 subsidiárias. Sem conseguir atender à demanda, em 1998, o Sistema Telebrás foi privatizado. O governo arrecadou R$ 22,2 bilhões. Agora, o governo quer criar uma grande operadora nacional, onde teria ações com direitos especiais e vetaria investidores estrangeiros.