Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 04, 2007

Primo Basílio, de Daniel Filho

O SR. "TELECINEMA"

Diz-se que Daniel Filho faz televisão para a tela grande.
É verdade. Por isso mesmo ele é um homem forte do
cinema nacional


Isabela Boscov

Carol Carquejeiro
Daniel: o poder que ele tinha em seu período na televisão e o medo que ele inspirava encolheram. Mas, uma vez manda-chuva, sempre manda-chuva


Na parede do escritório de Daniel Filho, na Barra da Tijuca, um quadro lista todos os projetos em que o produtor/diretor está envolvido a cada momento. O quadro não é decorativo; é um item essencial de organização. Alguns filmes saem da planilha, outros tomam seu lugar, mas o total se mantém constante entre as quatro e cinco dezenas – mais do que um grande estúdio americano produz a cada ano. Pelo quadro da produtora de Daniel, a Lereby (como na canção Let It Be, dos Beatles), já passaram desde filmes importantes da "retomada" cinematográfica brasileira, como Cidade de Deus, até outros bem menos cotados, como Viva Voz. No momento, está para sair do quadro Primo Basílio (Brasil, 2007), adaptado do romance homônimo do português Eça de Queiroz (1845-1900) e dirigido pelo próprio Daniel, que estréia nesta sexta-feira no país. Outros títulos já brigam pela vaga a ser desocupada, entre os quais uma biografia do médium Chico Xavier e uma continuação de Se Eu Fosse Você, novamente com Tony Ramos e Gloria Pires – que deve ganhar prioridade. Por volta dos 30 anos, Daniel Filho já era o diretor artístico da área de teledramaturgia da Rede Globo, que ajudou a tornar uma das maiores potências de comunicação do continente e na qual foi fundamental para instituir o padrão visual e narrativo que constitui o alfabeto cultural básico dos brasileiros. Hoje, aos 70 anos, ele é um dos homens fortes do cinema nacional. "Se não é para eu palpitar, então não sou o produtor que um diretor procura", disse ele a VEJA sobre sua quase-onipresença nos créditos de filmes nacionais.

Mandar na televisão e mandar no cinema, contudo, são dois poderes muito diferentes – mais ou menos como ser dono de latifúndio e ter uma chácara. No período áureo de Daniel na Globo, nas décadas de 70 e 80, não era incomum que quatro quintos dos televisores do país sintonizassem as novelas que ele supervisionava. Na tela grande, o recorde que ele atingiu como diretor – e uma das maiores bilheterias recentes do cinema nacional – é de 3,6 milhões de espectadores, com Se Eu Fosse Você (daí a idéia da continuação). O prestígio de que ele goza hoje também é inferior. Daniel gestou algumas das melhores novelas da história da televisão brasileira, como Gabriela, O Casarão e Roque Santeiro. Já os filmes que ele assina, embora alcancem bilheterias que vão do bom ao ótimo, obtêm críticas mornas – quando não decididamente frias. "Não sou um autor que deseja imprimir sua persona artística aos filmes que faz. Meu negócio é contar uma história direitinho, com clareza", defende-se.

Primo Basílio é um exemplo dessa filosofia. No fim dos anos 80, Daniel coordenou uma ótima minissérie baseada no romance, em que se destacava Marília Pêra como a criada que chantageia sua patroa – que aproveita a ausência prolongada do marido para aprender com o parente do título técnicas sexuais bem mais avançadas do que as que transcorriam no leito conjugal. O filme transpõe a ação de Portugal do século XIX para a São Paulo de 1958, de forma a dar um toque de Nelson Rodrigues ao enredo e também torná-lo mais próximo do público. As cenas de sexo ficaram um bocado apimentadas. O elenco, liderado por Débora Falabella, Fábio Assunção, Reynaldo Gianecchini e Gloria Pires, é todo oriundo da televisão – assim como o ritmo, os enquadramentos e o tom descritivo, que dão a Primo Basílio um ar de minissérie condensada. É exatamente essa a crítica que Daniel costuma receber: a de que faz televisão para a tela grande. É a pura verdade. Mas é essa também a sacada que lhe deu destaque no cinema atual: num país em que quase 90% dos municípios não têm sala de exibição, ele vem criando uma espécie de "telecinema" – um entretenimento diverso do que se tem todas as noites, mas que se comunique com o espectador na linguagem que ele conhece melhor. E que, de preferência, dê lucro. "As críticas ruins mexem com o ego, claro. Mas mexem mais ainda com o bolso", diz Daniel, que, aliás, ganha muito bem (5%, em média, sobre cada filme em que entra como produtor).

Débora e Assunção em Primo Basílio (à esq.) e Se Eu Fosse Você (à dir.), seu recorde de bilheteria: divertimento um pouquinho diferente do habitual

Até não muito tempo atrás, Daniel tinha a reputação de passar por cima de desafetos (foram muitos) com a força de uma divisão Panzer. O diretor admite que foi "difícil" (muitas vítimas prefeririam "grosseiro" ou "destemperado"), mas acrescenta que era jovem, trabalhava demais e vivia sob pressão extrema. Hoje, diz, aprendeu que "certas coisas são como são porque Deus quis". Uma lição, diga-se, tomada na marra. Daniel foi jogado para escanteio na Rede Globo (seu contrato atual o proíbe de fazer televisão aberta) e perdeu até a presidência da Globo Filmes, criada para ser seu reinado. Mantém o posto de conselheiro na empresa e produz filmes em sociedade com ela, mas sua palavra não é mais a última. Dissipou-se, assim, muito do temor que sua figura inspirava, e o diretor é visto até com certa complacência pela nova geração de cineastas – como um sujeito extrovertido, experiente e bom contador de "causos" (embora às vezes os repita), mas remanescente de outros tempos. Seus chiliques ainda são famosos, mas já não provocam o mesmo impacto. "Às vezes, numa crise de raiva, eu demito alguém ali, no ato. Aí a equipe esconde a pessoa até a poeira baixar, e pronto. Ninguém mais me obedece", brinca. Outras vezes, seu time antecipa que haverá um piti, e manobra para que ele não custe tanto. Ao concluir um de seus filmes, conta um colaborador, o montador enviou a Daniel uma falsa versão final, para que ele descarregasse nela sua fúria. Veio a explosão esperada e, três dias depois, seguiu a montagem verdadeira, que já estava pronta – a qual foi coberta de elogios, como também já se previa.

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