Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 12, 2007

Mailson da Nóbrega

Agências reguladoras, arbítrio e desenvolvimento


O vice-presidente José Alencar, um dos mais bem-sucedidos empresários brasileiros, mostrou há duas semanas que o êxito na atividade privada não credencia ninguém para exercer atividades no setor público, que requerem capacidade de discernir o papel do Estado e do governo em uma economia capitalista.

Alencar criticou a autonomia das agências reguladoras. ''''Nós fomos eleitos e esse pessoal manda mais do que a gente. Como é que pode?'''' Para ele, deveríamos rever tal autonomia, incluindo a do Banco Central. ''''É hora de aproveitarmos essa oportunidade que toda essa crise nos oferece (referia-se ao caos aéreo) para corrigirmos isso.'''' Para ele, ''''num Estado democrático, as decisões devem ser tomadas por políticos eleitos e não por técnicos''''. Quantos equívocos!

Alencar parece imaginar que os políticos promoverão o desenvolvimento se comandarem as agências, o que nunca foi verdade, nem aqui nem alhures.

A autonomia das agências é parte de um longo processo de evolução institucional, que desaguou no sistema capitalista contemporâneo. Tudo começou no princípio do segundo milênio, com medidas destinadas a limitar o poder discricionário dos reis europeus. Em 1037, a Constituição do imperador alemão Conrado II garantiu que os nobres somente poderiam ser privados da liberdade ou de seus bens mediante o julgamento de seus pares e não pela vontade do monarca.

A Carta Magna inglesa (1215), o mais importante documento político da era feudal, reconheceu direitos civis semelhantes. Embora destinada a proteger os interesses da aristocracia e do clero, ela criou restrições institucionais ao arbítrio, como as do artigo 12, que obrigaram o rei a consultar a assembléia de barões - o embrião dos parlamentos modernos - para criar tributos. O artigo 39 impediu o confisco da propriedade de um nobre.

Foram mais uma vez os ingleses que deram novos passos para restringir o poder discricionário dos governantes. A Lei de Direitos de 1688 transferiu a supremacia do poder para o Parlamento e retirou atribuições do rei para dispor sobre a despesa pública e demitir juízes. Firmavam-se as instituições que garantiriam o direito de propriedade e o respeito aos contratos. Essas e outras mudanças institucionais contribuíram para a expansão do crédito e criaram incentivos ao investimento, que constituíram duas das peças mais fundamentais da Revolução Industrial do século 18.

Medidas adicionais para restringir o arbítrio foram adotadas na Inglaterra e em outros países da Europa no século 19, contribuindo para fortalecer a democracia e para viabilizar o processo de crescimento continuado, até então desconhecido. Os EUA e outras colônias inglesas foram os principais herdeiros dessa tradição.

Entre o fim do século 19 e a primeira metade do seguinte, a complexidade gerada pela industrialização impôs a criação de agências autônomas dedicadas à defesa da concorrência e da estabilidade da moeda (os bancos centrais). Nos anos 80, as privatizações no Reino Unido fizeram surgir agências reguladoras autônomas para executar políticas públicas - particularmente nos serviços de infra-estrutura -, defender os interesses dos usuários e reduzir os riscos dos investidores. Distinguiu-se ação de Estado da de governo.

A experiência mostrou que os políticos não podem comandar essas agências, pois terão incentivos para adotar medidas oportunistas eficazes para gerar ganhos eleitorais, porém desastrosas mais à frente. O exemplo mais conhecido é o dos políticos populistas que usaram a política monetária para expandir irresponsavelmente a economia, particularmente na América Latina. A euforia com o aumento do consumo e do emprego gera dividendos políticos, mas o processo, insustentável, desemboca em crise inflacionária que solapa o crescimento e prejudica os segmentos mais pobres.

O modelo de agências autônomas existe para restringir o poder discricionário dos políticos, para o bem do país e deles próprios. A contrapartida é a responsabilidade de seus dirigentes perante o Congresso. Nossa experiência nessa área, muito recente, exige vigilância contra idéias como as defendidas por Alencar, que desprezam mais de 800 anos de evolução institucional, sem a qual a Humanidade estaria vivendo como na Idade Média.

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