O historiador inglês Antony Beevor mostra as
atrocidades dos dois lados da Guerra Civil Espanhola
Rinaldo Gama
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Quartel Carlos Marx, de combatentes republicanos, em Barcelona: stalinistas avessos a dividir o poder |
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O lugar-comum segundo o qual a história é sempre contada pelos vencedores não se aplica à Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Ao longo das últimas décadas, as forças republicanas da Espanha, derrotadas pelos nacionalistas liderados pelo "generalíssimo" Francisco Franco, ganharam uma aura romântica, de defensores da liberdade. Mas, como diz o historiador inglês Antony Beevor, "a verdade foi a primeira baixa da Guerra Civil". Num livro monumental, A Batalha pela Espanha (tradução de Maria Beatriz de Medina; Record; 714 páginas; 80 reais), o autor escapa da armadilha maniqueísta que transformou esse conflito numa luta entre democracia e civilização, simbolizadas pelos republicanos, contra o autoritarismo e a barbárie, dos quais os franquistas são sinônimo. O que Beevor demonstra é que os dois lados foram criminosos. Sim, Franco instaurou uma ditadura de moldes fascistas, que vigorou até sua morte, em 1975. Os republicanos, porém, muito provavelmente teriam convertido o país em um estado totalitário comunista, alinhado à União Soviética de Stalin.
Beevor é um especialista em história militar. Seu livro descreve minuciosamente as batalhas do período. Nessas passagens, a leitura se torna um tanto aborrecida. Mas vale a pena atravessá-las. A recompensa vem na forma de reflexões cristalinas, que Beevor vai tecendo amparado por farta pesquisa – favorecida pela abertura, há alguns anos, de importantes arquivos da extinta União Soviética e da Alemanha. O autor não se limita a analisar a guerra a partir de julho de 1936, quando teve início o levante dos generais de orientação fascista contra o governo da Frente Popular, coligação da fracionadíssima esquerda e de grupos de centro, que meses antes havia vencido as eleições. Na providencial sinopse da história da Espanha que abre o livro, Beevor procura mostrar como, para além de antagonismos de classe, a Guerra Civil ecoava antigos impasses do país, representados pelo choque entre governos centralizadores, autoritários, e movimentos regionalistas libertários.
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O general Franco: ele ditava a lista de execuções bebendo café |
Poucos conflitos mobilizaram tantos artistas, intelectuais, escritores (veja quadro abaixo) quanto a Guerra Civil Espanhola. Na maioria, eles colaboraram com o lado republicano – apoio que foi, segundo Beevor, "mais moral do que prático". A Guerra Civil Espanhola foi um dos primeiros conflitos em que a propaganda em massa teve grande importância – distorcendo a realidade. A Batalha pela Espanha busca restabelecer os fatos, aproximando as práticas de terror de ambas as partes envolvidas na luta. Franco tinha o costume de percorrer listas de prisioneiros depois das refeições, enquanto bebia café, para decidir pessoalmente quem seria executado. O número de execuções oficiais determinadas pelos nacionalistas estaria em 35.000, no mínimo. O total de vítimas dos republicanos chegou a 38.000, na maioria eliminadas em Madri e na Catalunha durante o verão e o outono de 1936. Pesquisando relatórios enviados da Espanha para Moscou, Beevor documenta a crescente hegemonia comunista dentro da Frente Popular. O Partido Comunista espanhol promoveu execuções até de aliados da causa republicana. "Os stalinistas, pela própria natureza da sua ideologia, não se dispunham a dividir o poder com mais ninguém a longo prazo", diz Beevor.
A política de não-intervenção adotada pelas potências não fascistas impediu a República, alinhada com a URSS, de comprar armas abertamente, enquanto os partidários de Franco recebiam apoio militar da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini. Para os nazistas, a Espanha tornou-se um campo de provas de armamentos e táticas de guerra. O bombardeio aéreo "em carpete" – contínuo e devastador – teve um de seus primeiros usos no ataque que a Força Aérea alemã desferiu contra Guernica, em 1937, promovendo o horror imortalizado no quadro de Pablo Picasso que leva o nome da cidade. Mas o que se passou na Espanha não foi só uma prévia da II Guerra. Lá se travou, nas palavras de Beevor, uma "guerra mundial por procuração".
Combate literário
A Guerra Civil Espanhola foi um dos conflitos que mais mobilizaram intelectuais. Veja alguns – e sua filiação política
Ernest Hemingway (1899-1961) – De acordo com o historiador Antony Beevor, o escritor americano foi uma espécie de turista de guerra: não combateu, mas foi à Espanha dar apoio moral aos comunistas. Seu romance Por Quem os Sinos Dobram fixou uma imagem idealista dos republicanos
George Orwell (1903-1950) – O escritor inglês lutou na Catalunha, ao lado dos republicanos, e acabou ferido no pescoço. Em suas memórias da guerra, porém, não poupou críticas aos comunistas
Federico García Lorca (1898-1936) – Embora o poeta espanhol não pertencesse a nenhum partido político, suas tendências liberais despertavam desconfiança entre os fascistas. Assassinado pelas forças de Franco em Granada, tornou-se a vítima mais famosa da Guerra Civil
Camilo José Cela (1916-2002) – Prêmio Nobel de Literatura de 1989, o escritor espanhol, conhecido principalmente por A Família de Pascual Duarte, lutou com as forças de Franco