Segundo professora da USP, tucanos têm pudor de se apropriar de suas realizações e pânico de ser acusados de direita
Carlos Marchi
Lourdes diagnostica iniciativas do governo Lula que concentram poder nas mãos do presidente e desestruturam mudanças do governo anterior, num claro rumo de reestatização e monopólio estatal. Para ela, Lula está sendo beneficiado por um conjunto de fatores que vai desde o programa assistencial, a bonança da economia, o aumento real do salário mínimo, a política de crédito para os pobres e a queda do preço dos alimentos e do cimento, tudo isso amplificado pela comunicação política reiterada do presidente e do PT.
Mas ela alerta para um fenômeno sociológico que ameaça turvar o horizonte de Lula: as populações de baixa renda favorecidas pelo governo satisfarão rapidamente suas necessidades imediatas e logo vão querer mais. ''''Resta saber se a economia poderá dar conta'''', pondera. Para ela, os déficits na área de infra-estrutura vão ser outro fator de incômodo para Lula, pois vão afetar o crescimento. Eis a entrevista:
A popularidade de Lula continua lá no alto. Isso é mais mérito dele ou defeito da oposição?
As duas coisas. E eu acrescentaria a economia. Para começar, eu sempre constatei um déficit de comunicação do governo Fernando Henrique e um superávit de comunicação do PT e de Lula. Dou um exemplo. O Proer foi o melhor programa de resgate de potenciais crises sistêmicas na América Latina. O PT conseguiu vender o Proer como se tivesse sido criado para proteger os bancos...
A blindagem de Lula vem dos projetos assistenciais?
O projeto assistencialista ajudou muitíssimo e a economia vai muito bem. Mas o melhor do PT foi a comunicação política reiterada. Por exemplo: Lula se apropriou da idéia de que a estabilidade foi obra dele. Mas houve mais: o aumento real do salário mínimo e uma política de crédito muito favorável para quem ganha pouco. Por último, o preço dos alimentos e do cimento baixou.
Essa blindagem é só de Lula ou poderá ser transferida para seu candidato em 2010?
Tudo vai depender da bonança internacional. Começam a surgir sintomas adversos, como a turbulência da semana passada, embora não seja nenhuma crise sistêmica. Lula será um eleitor importante na definição do candidato, mas sua chance de eleger o sucessor é outra coisa. Carisma não se transfere. Mas ele terá o poder de forjar o candidato e o fará com um olho na sucessão dele, em 2014.
Tudo joga a favor de Lula e do PT?
Há dois aspectos que não estão sendo considerados. O primeiro é que, com todas as melhorias para as populações de baixa renda, uma vez satisfeitas as suas necessidades imediatas elas vão querer mais. Resta saber se a economia poderá dar conta. Até aqui, só com a queda da taxa de juros, Lula teve R$ 60 bilhões a mais para gastar. Não sei se a economia internacional dos próximos anos continuará garantindo essa margem. O segundo é que os déficits na infra-estrutura vão afetar o crescimento.
Em que direção Lula está conduzindo o Estado brasileiro?
Há uma série de iniciativas que aumentam o poder de arbitragem de Lula e que desestruturam mudanças feitas no governo anterior. Há sintomas de tentativas de reconcentração. São tentativas de voltar a esquemas de monopólio estatal. Isso é reestatizante.
O que distingue basicamente o PT do PSDB?
Existem diferenças profundas. A concepção de Estado e a concepção de democracia. Um teste de stress será vermos se o programa do PT, que prega uma Constituinte independente do Congresso, vai prevalecer. A concepção que está no programa do PT, e que também é de Lula, é mais uma concepção de democracia plebiscitária - ''''se fui eleito com tantos votos, tenho direito a mudar as coisas''''. O PSDB representa uma concepção de democracia representativa, que precisa de instituições, Estado de Direito, transparência, valores, accountability. A meu ver, esses dois princípios de organização social são inconciliáveis. A longo prazo, teremos uma luta entre eles que vai levar 20 anos para ser resolvida.
O governo tem demonstrado desapreço por tarefas essenciais do Estado - gasta descontroladamente, aumenta a folha de funcionários, ignora o crescente déficit da Previdência. Que conseqüências isso trará?
Cedo ou tarde, nós teremos de pagar um tributo por isso. Em alguns casos, é possível que tenhamos novos ''''esqueletos'''' nos armários. Quem vai pagar essa conta seremos nós, os contribuintes. Talvez isso vá ser enfrentado por movimentos cívicos não controlados pelo PT, já que a oposição ainda está num jogo meramente reativo. Vai depender de a sociedade se mexer.
Isso não divide o País em dois brasis?
Não, não. Quem ganhou no governo Lula? Você acha que foram só os pobres? Veja os lucros dos bancos. As duas pontas convergiram os interesses. E ainda tem boa parte do setor privado, que se ajustou ao novo modelo, é competitivo e foi para o exterior ganhar dinheiro. Não há dois brasis. O que há é um sanduíche espremendo a classe média.
O que a oposição não faz e deveria fazer para se contrapor ao governo Lula?
O PSDB é um partido de quadros, não é um partido de massas. O PT, ao contrário, não tem problemas de massa, mas não oferece grandes quadros. O PSDB sempre teve um déficit de comunicação. Parte sempre do pressuposto de que, se está fazendo a coisa correta, logo será reconhecido. Um pudor, mas um pudor enorme de se apropriar de realizações políticas e um medo pânico de ser acusado de direita. O PT sempre foi agressivo sob este ponto de vista. Mente sobre o Proer, como fez Lula ontem.
Como será o Brasil pós-Lula?
O copo está meio cheio, meio vazio. Certas instituições estão ativadas, como o Ministério Público, a Polícia Federal com uma certa autonomia, algumas instituições do Judiciário. Vai dar muito trabalho se desfazer delas. Ao mesmo tempo, eu identifico alguns pontos que caracterizam uma regressão. Se vai ser mais moderno ou não, vai depender de três coisas. Em primeiro lugar, do grau de competitividade política; em segundo, do quanto vamos conseguir concretizar de reforma política - e aí eu sou descrente; por último, da participação social no processo político. Quando Lula ameaça pôr gente nas ruas, dá para imaginar o trabalho que vai ter um futuro governo que queira voltar a sanear o Estado. Em compensação, nós temos uma imprensa muito ativa, muito aplicada e que está, até, substituindo a oposição.
Quem é: Lourdes Sola
Professora da USP
PhD em Ciência Política pela Oxford University
Ex-professora da Flacso e da UCLA