Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 12, 2007

FERREIRA GULLAR

Inimigos íntimos


Dos três mosqueteiros do concretismo, Décio era o mais simpático, o mais dialogável

DÉCIO PIGNATARI está fazendo 80 anos, quem diria! Em 1954, quando publiquei "A Luta Corporal", éramos todos jovens e certamente nem pensávamos em nos tornar os senhores idosos que somos hoje. A Folha publicou entrevista no sábado, dia 4, em que, dizendo-se meu inimigo íntimo, acusou-me de ter entrado para o PCB para fazer carreira. Bela carreira: clandestinidade, exílio e cadeia. Esperteza é comigo mesmo!
Dos três mosqueteiros do concretismo, Décio era o mais simpático, o mais dialogável, mas meu primeiro contato foi com Augusto de Campos. É uma história conhecida, mas não de todos. Eles se haviam entusiasmado com "A Luta Corporal" e me procuraram para, juntos, iniciarmos um movimento renovador da poesia brasileira. Confesso que não cogitava isso e, se desintegrara a linguagem no livro referido, não foi com propósitos vanguardistas, mas por desejar dizer além do que a linguagem verbal permite.
De qualquer modo, iniciamos um diálogo, trocamos cartas e daí nasceu a poesia concreta. Não tive papel relevante na criação do movimento mas, como havia desintegrado o discurso, discordei quando propuseram criar "um novo verso". Trata-se de criar uma nova sintaxe, sugeri, e eles a criaram: a sintaxe visual do poema sem discurso. O nome "poesia concreta", tomaram emprestado à arte concreta, que já era praticada no Rio e em São Paulo, desde 1950.
Batizado o movimento, fez-se a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, em dezembro de 1956, em São Paulo, e em março de 1957, no Rio. O órgão difusor do movimento foi o Suplemento Dominical do "Jornal do Brasil", dirigido por Reynaldo Jardim, do qual eu era parceiro e colaborador.
Já nessa primeira exposição, surgiram as divergências, que apontei então num artigo: os concretistas paulistas eram demasiado cerebrais, substituíam a criatividade pela teoria. A ruptura se deu, seis meses depois, quando Haroldo nos mandou um texto afirmando que a poesia concreta seria feita segundo equações matemáticas. Telefonei para Augusto e lhe disse que não podia concordar com semelhante tese, já que se tratava de algo inviável. Eles, como sempre, não arredaram pé e, assim, publicamos o texto deles e, ao lado, um meu, afirmando a poesia concreta como "experiência fenomenológica". Cindiu-se o movimento, mas continuamos a publicar seus textos no SDJB, enquanto eles quiseram.
Quase dois anos após a ruptura, Décio me telefona. Falei com Reynaldo e marcamos um almoço, ocasião em que revelou o motivo por que nos procurara. Afirmou que a indústria brasileira sempre fora uma indústria de consumo e só então se tornava indústria de base; com a poesia brasileira ocorria a mesma coisa: sempre se fez uma poesia de consumo e era preciso fazer, finalmente, uma poesia de base. Ele trazia no bolso um novo manifesto, propondo a criação dessa nova poesia. Então, falei eu:
- Décio, a ruptura do movimento concretista se deu porque vocês entenderam que a poesia teria que ser feita segundo equações matemáticas, não é verdade? Pois bem, já faz mais de ano que isso aconteceu. Vocês fizeram a tal poesia matemática? Não fizeram. Agora você nos vem com um novo manifesto, pregando essa tal poesia de base. Não vamos publicá-lo. Volta para São Paulo, faz com teus companheiros os poemas de base e nos manda que publicaremos. Mais um manifesto prometendo uma poesia que nunca será feita, isso não.
A conversa terminou aí. Ele se foi e nunca nos mandou os tais poemas de base, que, como prevíamos, jamais foram escritos. Redigir manifestos sempre foi uma mania das vanguardas, quase sempre prometendo coisas que não se realizam.
O movimento neoconcreto só surgiu dois anos após o rompimento com os paulistas. Não foi resultado disso mas, sim, do rumo diferente que tínhamos tomado, nós, os pintores, escultores e poetas do grupo carioca. Quando surgiu a idéia de fazermos uma exposição dos nossos trabalhos, propus que nos denominássemos neoconcretos, pois o que fazíamos já quase nada tinha a ver com o concretismo. Então escrevi o manifesto que, em vez de pretender ser um "plano piloto", era uma tentativa de revelar o que de novo já havíamos feito.
Quando publiquei, em 1976, o "Poema Sujo", Décio veio a público negar-lhe qualquer valor ou qualidade, talvez porque a crítica brasileira o tivesse unanimemente aplaudido. Não foi um gesto bonito, mas o compreendo e desculpo. É que Décio Pignatari, embora inteligente e culto, nunca foi poeta, nem de consumo nem de base, o que não me impede de cumprimentá-lo pelos seus 80 anos.

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