O Estado de S. Paulo |
2/8/2007 |
O presidente da República fez uma confusão tremenda em seu discurso de terça-feira. Nisso, Luiz Inácio da Silva é coerente: embaralha as idéias com uma precisão e previsibilidade suíças. Mas, desta vez, em Cuiabá, protagonizando uma das últimas solenidades regionais para o lançamento do PAC de saneamento e habitação, antes do cancelamento das outras 12 previstas, caprichou na mistura. Foi assertivo em sua precipitação, absolutamente leviano nas acusações aos críticos e autocrático ao traduzir-se como sinônimo da única força política válida no país. Lula confunde-se com o Brasil, confunde-se com a democracia, confunde-se, enfim. O trecho do discurso é longo, mas cumpre a transcrição para facilitar o entendimento: “Minha amizade pessoal é uma coisa, questão partidária é outra, relação com os adversários é outra. Mas tem gente que não pensa assim. Essa gente que não pensa assim fez a Marcha com Deus pelo Liberdade em 1964, que resultou no golpe militar. Essa gente que não pensa assim levou Getúlio Vargas ao suicídio. Essa gente que não pensa assim ficou contente com os 23 anos de regime militar e está incomodada com a democracia. Porque a democracia pressupõe o pobre ter direitos.” “Os que estão vaiando são os que mais deveriam estar aplaudindo, porque são os que mais ganharam dinheiro no meu governo. A parte pobre da população é que deveria estar zangada. É só ver o quanto ganharam os banqueiros, os empresários. Não pensem que vão deixar o Lula dentro do gabinete. Estou realizando essa solenidade em lugar fechado porque é um ato institucional. Não estou fazendo comício. Mas se alguns quiserem brincar com a democracia, sabem que ninguém neste país consegue colocar mais gente na rua do que eu.” Ao fim da barafunda, depreende-se que o presidente da República está chamando quem se opõe a ele para a briga, ameaçando carimbar como golpista o exercício do contraditório e do protesto e dizendo-se capaz de organizar, nas ruas, o contragolpe ao suposto golpe. Não foi possível alcançar o que o presidente quis dizer com “amizade pessoal é uma coisa, questão partidária outra e relação com adversários, outra”. E seria importante obter o significado real da frase porque ela serve de introdução a acusações a quem não “pensa assim”. Assim, como, a respeito do quê? De amizade, de partidos, de adversários? Mas vamos que estivesse se referindo genericamente aos que “estão vaiando”, externando discordância e insatisfação. Segundo ele, quem vaia, discorda e está insatisfeito merece a pecha de “essa gente” e ainda a acusação de ter marchado pelo golpe, levado Vargas ao tiro no peito, compartilhado do banquete da ditadura. O presidente da República usa artimanhas de oratória de forma desmedida, incongruente e irresponsável. Primeiro porque não sabe do que fala. Segundo, porque o país é jovem, algo desmemoriado e tampouco sabe direito sobre o que fala ele. Terceiro, porque refestelados nos gabinetes do autoritarismo estavam vários de seus aliados, gente que hoje “pensa assim” e o aplaude em troca de cargos. Quarto, porque Lula desrespeita o enorme contingente de pessoas que discordam dele e discordaram até mais que ele da ditadura, cujos atos de governo já lhe serviram várias vezes como modelo de país, sendo a vocação para a supremacia do Estado sobre a sociedade apenas uma delas. Quinto, porque boa parte “dessa gente” contribuiu para a retomada da democracia e, ao contrário do PT, participou efetivamente da transição, a começar por legitimar a via eleitoral - enquanto os sectários pregavam o voto nulo - e a terminar pelo apoio à candidatura de Tancredo Neves no colégio eleitoral de 1985, repudiado pelos petistas ao ponto de ter custado a expulsão de três deles. Sexto, porque democracia não pressupõe só a garantia aos “direito dos pobres”, mas de todos os cidadãos. Muitos desses direitos, aliás, assegurados aos pobres na Constituição de 1988, na qual o partido de Lula recusou-se a pôr assinatura. Sétimo, porque o fato de empresários e banqueiros terem “ganhado dinheiro” durante o governo de Lula não os obriga a serem reverentes. Oitavo, porque se acha que os ricos deveriam estar felizes e os pobres, “zangados”, então confessa ter privilegiado alguém em detrimento de outrem. Nono, porque tem medo de vaia sim. Pautado por ele absteve-se de abrir e encerrar os Jogos Pan-Americanos. No lugar disso, receberá os medalhistas no gabinete. Como prova disso, mandou cancelar viagens aos Estados e reage a possíveis manifestações de protesto ao molde de Luís XIV, como se “L’État”, no caso de Lula, fosse realmente “moi”. Décimo, porque admite “brincar com a democracia” quando acusa os críticos de promoverem a brincadeira e, ao mesmo tempo, lança o repto: “Ninguém neste país consegue colocar mais gente na rua do que eu”. De fato, quando se tem nas mãos os instrumentos de Estado e não se tem pejo em usá-los, consegue-se tudo. Menos impedir as pessoas de pensar. |
Entrevista:O Estado inteligente
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