Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 19, 2007

DANUZA LEÃO

Nunca mais


Apareceu uma lua cheia que clareou a praia toda, e entramos no mar, rindo e brincando como crianças

EU QUERIA acordar tendo perdido a memória e me esquecido de tudo; de tudo de ruim e até das coisas boas. Mas às vezes não dá e a gente se lembra.
Já faz tempo, mas eu me lembro de uma praia em que não havia uma só pousada, um só turista com celular que tira fotos; só os da terra, que nasceram ali e dali nunca saíram. Gente que nunca viu televisão, que não sabia do que se passava no mundo. Gente que não aprendeu a ler nem a escrever, mas que sabia se ia chover pelo vento que soprava ou pela ondulação das ondas. E para quem isso não tinha nenhuma importância, pois que chovesse ou fizesse sol, não ia mudar suas vidas, já que não acontecia mesmo nada em dia nenhum.
Passeando pela areia havia sempre um vira-latas sem dono, fazendo a única coisa que sabia: procurar restos de comida para matar a fome.
Ele nunca provou nenhuma ração e era capaz de se regalar com restos de peixe, sem engolir um só espinho. O nome dele era Marujo; havia também umas galinhas ciscando, e se alguém chegasse perto, elas fugiam, esbaforidas.
Os da terra nunca tomavam banho de mar; as mulheres usavam vestidos de chita de florzinha cobrindo os joelhos, não mostravam as pernas, seus cabelos eram longos, com mechas douradas pelo sol, e o penteado era uma trança nas costas; o único produto de limpeza que usavam era sabão. Com este sabão lavavam as panelas, as roupas, o corpo e os cabelos.
À tarde chegavam os mosquitos, e se não havia repelente, o remédio era nenhum. De vez em quando a gente se abanava, e quando via algum mordendo a perna, dava um tapa; conseguindo acertar, a perna ficava com uma manchinha de sangue (do mosquito). Ninguém perguntava o que se ia comer porque era quase sempre a mesma coisa: peixe ensopado com farinha, às vezes um pirão, feijão mulatinho e arroz. Os mais entendidos disputavam a cabeça dos peixes, que era saboreada como a melhor iguaria do mundo.
Nessa praia pouco se falava, até porque não havia assunto. Lá ninguém se estressava, ninguém se queixava da vida, sofria de ansiedade, fazia planos para o futuro. Era nascer, viver e morrer, o que todos achavam muito natural; e não é? Aos domingos todos iam a uma pequena igreja em cima de um morro, para rezar e cantar.
Quando a canoa dos pescadores ia chegando, todo mundo ia para a praia, ver se a pesca havia sido boa; e quando um barco estranho às vezes se aproximava, todos os moradores iam ver a chegada dos forasteiros, como se fossem seres de outro planeta.
No início, para chegar a essa praia, só de canoa; mas um dia apareceu alguém da cidade, ficou amigo dos pescadores, comprou a casa de um deles e conseguiu que abrissem uma estrada, para poder chegar por terra.
Nos primeiros tempos a estrada era muito ruim; quando chovia, os carros atolavam, e só com a ajuda dos locais empurrando eles saíam da lama. E os homens foram chegando, ocupando a praia; tudo acabou quando chegou o asfalto. Aí brotaram as biroscas vendendo cachaça, começaram a acontecer brigas, e um dia, numa delas, um homem morreu de facada.
Essa praia existiu e lembro que foi lá, talvez, que passei os dias mais felizes da minha vida. Ainda não havia luz elétrica, só lampiões; uma noite apareceu uma lua cheia que clareou a praia toda, e entramos no mar, que era morno e sem ondas, rindo e brincando como crianças, achando que a vida existia só pra isso, para a gente ser feliz.
Muitos anos se passaram, mas um dia você se pega pensando em como foi bom e sofre porque sabe que em nenhum lugar do mundo nada de parecido vai acontecer, nunca mais.
danuza.leao@uol.com.br

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