Daniel Piza
Um jovem leitor me fez a pergunta clássica, se me considero de direita ou de esquerda. Bem, se ser de esquerda é ser marxista, socialista ou de algum modo anticapitalista, e simpatizar com figuras como Hugo Chávez e Fidel Castro, seguramente não sou. E se ser de direita é pregar o Estado “mínimo”, o mercado 100% livre, e apoiar a guerra de Bush no Iraque e defender uma moral religiosa como a se viu no debate sobre a ortotanásia de Terri Schiavo, também estou longe de ser. Da mesma forma, acho que ser de centro não é ser direita envergonhada (como diz a esquerda) ou esquerda disfarçada (como diz a direita); não é ficar em cima do muro, coisa de oportunistas ou medrosos. É justamente ter consciência de que a realidade exige mais. Só quem tem um mundo muito pequeno pode reduzi-lo a Bush x Chávez.
Para mim, porém, embora regimes socialistas tenham caído no autoritarismo, direita sempre foi o partido da ordem, de cima para baixo, como o regime militar instalado em 1964. Nesse aspecto, me sinto mais à esquerda, porque sou radicalmente defensor da democracia, da liberdade de expressão e dos direitos civis, do indivíduo em vez de classes ou etnias. Acho que tradição é para ser respeitada e renovada, não para ser adorada por si só. E, para ser um pouco mais prático na resposta ao leitor, sei onde teria estado ou estive em clivagens históricas, do caso Dreyfus à queda do Muro de Berlim, e que desde que me dou por gente votaria em democratas nos EUA e trabalhistas na Inglaterra, para ficar em dois países bipartidaristas. Aqui, até por falta de opção, votei sempre em PSDB e PT, jamais em Malufs e Collors.
Agora, por criticar muito o governo Lula, ainda que também tenha criticado muito o governo FHC, de vez em quando vejo que tentam me encaixar na direita ou numa “nova direita”, já que esse seria um governo de esquerda. Primeiro, então, é preciso avisar ao próprio presidente que ele continua a ser de esquerda, porque ele mesmo declarou que já não é. Segundo, todos os atos desse governo são conservadores, ou seja, mantêm o status quo brasileiro, marcado por uma desigualdade social e regional tremenda. Tal como o antecessor, Lula aposta numa combinação de política econômica que agrada ao mercado e programas sociais que atenuam as estatísticas; estabilidade monetária e Bolsa Família são seus pés de apoio. O problema é que é preciso andar mais rápido se quisermos realmente que esta democracia capitalista inclua o máximo de gente. Reformas estruturais e educação de qualidade continuam além do horizonte.
O debate por aqui, no entanto, parece dividido em questões de superfície. De um lado, os que detestam Lula por sua figura; do outro, os que acham que é justamente sua figura que dá esperança aos pobres e incomoda os ricos. Os pobres e os ricos estão satisfeitos com Lula, antes de mais nada por essa mesma simbologia. Inquietos estão apenas alguns setores organizados, como o MST, e uma parcela da classe média, que se vê com menor poder aquisitivo a cada ano, mesmo que inflação e desemprego tenham caído um pouco. Vaias no Pan e movimentos como esse “Cansei”, organizado por OAB, Fiesp e João Dória Jr., não significam que Lula não seja popular ou que queiram destituí-lo, mesmo que se ouça um “Fora Lula” aqui outro ali, como o próprio não se cansava de pedir “Fora FHC” - fato que, segundo sua lógica, faz dele um ex-golpista.
Que Lula queira ser unânime e não ter oposição nenhuma é mais um traço lamentável de sua personalidade. Só não é novidade. O que também está claro há tempos é que a conversão ao “centro” dele e do PT gerou um governo neotucano, mas não eliminou vícios e interesses desses ex-utópicos. Como todos os governantes anteriores, os petistas e seus aliados ocuparam todas as engrenagens da máquina pública sem critérios profissionais, como se vê agora na distribuição de cargos ao PMDB de Luiz Paulo Conde, Renan Calheiros et caterva, assim como no desejo de ter uma megatelefônica estatizada. Não fazem isso por “bolchevismo”, não - mas por uma mentalidade típica que aproxima a oligarquia rural, o empresariado urbano e o sindicalismo pelego desde Getúlio Vargas, ditador que Lula voltou a elogiar nesta semana.
Para eles, o Estado é uma mãe, a mãe Joana, cuja casa tem muitos confortos e regra nenhuma. É por isso, mais do que por ideologia, que eles não querem saber de privatização e não sabem o que fazer das agências reguladoras. Não falo da privatização dos tucanos, a “privataria”, nem das agências como eles a fizeram, autarquias ocupadas por amigos e não por técnicos. Falo da privatização que reduz o peso do Estado - tanto FHC como Lula aumentaram impostos e gastos públicos - e o libera para cuidar a sério de educação, saúde, justiça e da infra-estrutura, esta por meio de órgãos autônomos mas eficientes. Apesar dos bons ventos mundiais, o atual governo está envolvido em tantas crises - como agora os apagões político e aéreo, entre outros - por sua falta de vergonha e por sua concepção do Estado como opositor do mercado.
Como você vê, prezado leitor, a polarização do debate em “esquerda” e “direita” não poderia ser mais conveniente. Nem mais cansativa.
CADERNOS DO CINEMA
A morte quase simultânea de dois grandes cineastas, Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, provocou os esperados encômios pelo “fim de uma era”. A bem da verdade, havia algum tempo essa era já era... Ainda que muitos cineastas posteriores, de Kieslowski a Woody Allen, tenham sido influenciado por eles, seu auge e seu estilo já não existiam. O cinema hoje foge do silêncio e da lentidão como da morte, e os closes são cada vez mais escassos, porque considerados muito “teatrais”. Não que o cinema em que “não acontece nada”, como se queixam de Bergman ou Antonioni, seja o único tipo profundo ou denso de cinema, como parecem pensar os freqüentadores de cineclubes e os críticos que adoram falar da “incomunicabilidade” dessas obras (o que muito irritava Antonioni). Orson Welles, John Ford, Jean Renoir, Hitchcock, Kubrick ou Coppola também fizeram filmes assim, embora com mais ação ou trama.
A maior perda não é a dos tempos dilatados, que me incomodam mais em Antonioni - especialmente na trilogia A Aventura, O Eclipse e A Noite (apesar do bom ritmo de suspense do primeiro e das belas cenas em todos) - do que em Bergman, justamente por sua maior riqueza dramatúrgica. A maior perda é a da idéia de que um grande cineasta deve ter a consciência de que sua arte é tributária das outras artes, um feixe que combina teatro, literatura, pintura e música, e não uma historinha que se define pelo desfecho. O Antonioni de Blow Up e Profissão: Repórter trata justamente disso, de como não existe distinção total entre forma e conteúdo. E Bergman dizia que seus “filhos” preferidos eram Persona e Gritos e Sussurros, exatamente por terem expandido a linguagem do cinema com uma montagem que dá tanto peso às formas e às cores quanto ao tema ou à fala - embora eu goste tanto de filmes mais difíceis, como Paixão de Ana, quanto dos mais leves, como Morangos Silvestres. O cinema hoje é muito careta.
TERPSÍCORE
O novo espetáculo do Grupo Corpo, Breu, com música de Lenine, é excelente. A coreografia de Rodrigo Pederneiras parece trazer elementos de muitas anteriores, como as repetições e os requebrados daquelas do início dos anos 90 - como a própria Sete ou Oito Peças para um Ballet, de Philip Glass, reexibida no programa - e as linhas e interações de trabalhos mais recentes. Ao mesmo tempo, é uma obra radicalmente nova. Lenine não fez uma colagem de ritmos; passa por xaxado, maracatu e forró, entre outros, mas cria uma textura muito interessante, que traz desde melodias em flauta até a bateria de Igor Cavalera. A passagem lírica, com um pas-de-deux ainda mais anguloso e enérgico do que os de Lecuona, é inesquecível. E o tema da violência, traduzido em corpos que se movem no chão como formas orgânicas, não é em nenhum momento explorado por seu apelo. O que fica é a aventura de uma linguagem.
POR QUE NÃO ME UFANO
A precipitação de lado a lado em definir as causas do acidente da TAM continua. Mas o que não se pode afirmar é que ele nada tenha a ver com a crise aérea. No mínimo, porque em todos os outros acidentes com Airbus A320 em que o manete não estava no lugar por falha humana ou mecânica, nas Filipinas, em Phoenix e em Taiwan, não houve vítimas entre os passageiros, pois as pistas tinham boas condições e áreas de escape. Governos anteriores colaboraram para que Congonhas não tivesse segurança para aviões desse porte? Sem a menor dúvida. Mas o governo em curso também deve ser cobrado por ter gastado uma fortuna na reforma sem dar ouvido para esse antigo alerta.