Satanás apostilado?
"Há claros indícios de que os apostiladores criaram uma solução brasileira de grandes
méritos e originalidade para a educação"
Segundo conhecido educador, os "apostiladores" "embaralham-se numa sucessão de ecos sem fim e sem propósito (...) envoltos pela aura clássica da memorização/reprodução (...) de modo que não reste tempo hábil para o vago e moroso trabalho do pensamento (...)". Quem seriam esses mercadores sinistros, que oferecem à juventude um ensino no qual se decora, em vez de pensar? Na realidade, são apenas escolas bem-sucedidas que, a partir de certo momento, passaram a ofertar a outras instituições um conjunto de serviços educacionais desenvolvidos para si próprias. Tornaram-se operadoras de grandes redes de escolas associadas (em uma das quais o autor trabalha). Mais de 1,7 milhão de alunos estão em instituições privadas ligadas a uma dessas redes (Anglo, COC, Objetivo, Pitágoras, Positivo, UNO e outras).
Ilustração Atômica Studio |
Por que as escolas desejariam pertencer às redes dos "apostiladores", tão duramente acusados? Uma hipótese persuasiva é que as redes operariam como uma secretaria de educação, cuja missão é apoiar escolas. Preenchem um vácuo. Vejamos:
Estruturação do ensino. Pelas pesquisas, quanto mais planejado o ensino, mais os alunos aprendem. Passo a passo, os livros das redes oferecem teoria, aplicação, exercícios e provas. Essa ajuda permite ao professor sair da decoreba e botar a cabeça dos estudantes para funcionar. E, quanto mais o livro facilita a vida do professor, mais ele pode se dedicar àquelas dimensões artesanais e afetivas, tão críticas para o aprendizado.
Integração curricular. Como oferecem coleções completas, um livro fala com o outro, integrando diferentes partes do currículo.
Formação de professores. O que mais atrai as escolas associadas é a preparação de seus professores. Eles aprendem conteúdos, a melhor forma de ensinar e o uso eficiente dos livros. Considerando a fragilidade dos cursos de formação de professores, é um apoio expressivo para o ensino.
Janela para o mundo. A rede rompe o isolamento e revitaliza as escolas, oferecendo-lhes uma chance única de tomar contato com novas idéias e conhecer as melhores práticas escolares.
Avaliação do ensino. As redes avaliam o desempenho de professores e alunos das escolas associadas e colaboram nos projetos para melhorar o ensino.
Serão tais serviços relevantes para a qualidade da educação? Ou as redes são arautos da "compartimentalização dos informes conteudistas"? Se acreditamos em ciência, a resposta está na evidência tangível. Pelos dados de uma das redes, 60% das escolas associadas encontram-se dentre as três melhores de suas cidades na prova do Enem. Essa rede exibe médias superiores às do restante da rede privada – já amplamente superiores às públicas. Tais resultados demonstram ser infundada a queixa de que as "apostilas" não dão uma verdadeira educação, já que o Enem mede raciocínio, e não decoreba. A escola da Embraer usa as satânicas apostilas e só aceita alunos da rede pública. Como é possível ser a terceira melhor escola do estado de São Paulo?
Se as redes atendessem às escolas públicas, os benefícios deveriam ser ainda maiores, pois grande parte das instituições de ensino e dos professores vive desgarrada e sem apoio técnico das secretarias. A idéia é atraente. Mas há um empecilho. As redes são financiadas pela venda de suas coleções de livros. Como os alunos de escolas públicas recebem do MEC seus livros, poucos municípios ou escolas se dispõem a arcar com o custo cobrado pelas redes para adquirir as coleções. Contudo, no caso do governo de São Paulo, é também facultado receber os recursos diretamente, em vez de livros. Na época da Prova Brasil, São Paulo tinha 635 municípios. Uma rede vendia seus livros e serviços a 46 deles. Segundo o índice de qualidade da educação do MEC (o Ideb), dentre os dez municípios paulistas com notas mais altas, cinco eram apoiados por essa rede (e um por outra rede). Ou seja, os municípios que entraram nas redes aumentaram dramaticamente sua chance de estar dentre os melhores. Portanto, há claros indícios de que os apostiladores criaram uma solução brasileira de grandes méritos e originalidade. Inovação única no mundo, já se cogita a sua exportação.