Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 03, 2006

O desencanto do senador

O ESTADO DE S PAULO EDITORIAL


O desencanto do senador

A notícia não ocupou muito espaço nas páginas políticas. No entanto, o seu simbolismo é ofuscante. O senador amazonense Jefferson Péres, do PDT, considerado uma "referência moral" da casa, anunciou quarta-feira da tribuna que deixará a vida pública em 2010, quando terminar o seu mandato - e ele tiver 78 anos. A idade há de ter pesado na sua decisão, mas é outro o naufrágio, como o general De Gaulle se referia à velhice, que o faz abandonar o barco. Trata-se do adernar da ética na política - e, mais ainda, ele não se guardou de dizer, da aceitação por ponderável parcela do eleitorado do afundamento dos níveis mínimos de decência nas práticas de governo.

Feriram as convicções e as esperanças do advogado, economista, administrador de empresas e senador reeleito, que jamais foi acusado de conduta imprópria, a "conivência do presidente da República com um dos maiores escândalos de corrupção" e o fato de ele estar "a caminho da reeleição, talvez no primeiro turno, porque os eleitores votam nele sabendo que ele sabia de tudo". Com menor ou maior freqüência, ouve-se das tribunas do Congresso toda sorte de ataques a presidentes, ministros, juízes e - obviamente - agremiações políticas. Mas os parlamentares, por motivos não menos óbvios, não ousam criticar os eleitores.

Péres, com o seu perfil ascético e oratória contundente, quebrou o tabu. Os eleitores de Lula, acusou, "compactuam com isso porque são iguais, se não piores. É a declaração pública, solene, histórica do povo brasileiro de que desvios éticos de governantes não têm importância. E não é só o povão, não. Temos intelectuais e artistas apoiando isso". Releve-se o que decerto há de injusto na generalização sobre os brasileiros, assim como o exagero expresso no termo "putrefação moral" que o senador empregou no seu diagnóstico sobre o Brasil de hoje. Mas antes a ira desbragada, para o resgate dos valores cívicos, do que o silêncio dos complacentes - sem falar, é claro, do aplauso solidário dos entorpecidos morais.

A complacência de uns e a cumplicidade de outros é tudo que o presidente Lula podia desejar para dizer, sem perder votos, as enormidades a que se entrega nesta campanha. Uma das mais recentes é a de se gabar, espantosamente, da inquebrantável solidez dos laços de amizade que o unem - em mais de um sentido, sem dúvida - aos arquitetos desse vale-tudo em que se banhou o seu governo e o seu partido. Por muito menos, quem sabe, Ruy Barbosa escreveu há quase 100 anos: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."

É, com muito menos arroubos retóricos, o idêntico "profundo desencanto" que o senador amazonense confessou sentir para justificar a resolução de se distanciar da esfera pública no final da próxima legislatura. Um colega de Senado, o mineiro Wellington Salgado, do PMDB, pediu-lhe que colocasse entre parênteses a sua intenção e esperasse o resultado das eleições para o Congresso, que ao que tudo indica tende a sair das urnas de 1º de outubro renovado em proporção ainda imponderável - como já aconteceu outras vezes. Mas, para apaziguar políticos dignos como Péres, o novo Congresso precisaria, no mínimo, fechar a grande brecha legal que permite a figuras de notória folha corrida eleger-se e reeleger-se.

Atualmente, políticos imersos em processos os mais cabeludos podem se candidatar e tomar posse se não tiverem sido condenados em caráter definitivo. (Candidatos a concursos públicos não têm essa facilidade.) Segundo a Lei das Inelegibilidades que regulamenta o artigo da Constituição sobre abuso de poder econômico, corrupção e fraude, a vida pregressa dos interessados em obter mandato eletivo, por pior que ela seja, não basta para excluí-los, sem o referido trânsito em julgado. A bancada das mãos limpas - que existe e é atuante, como se vê na CPI dos sanguessugas - poderia se articular para tornar mais estrita essa legislação, respeitados os direitos individuais.

Essa é uma das batalhas pela moralidade política em que legisladores como Jefferson Péres podem se envolver para transformar o seu desalento com a consagração das mãos sujas em energia transformadora. Para citar Ruy ainda uma vez, "maior que a tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado".

Arquivo do blog