A coisa errada, na frente de muita gente |
artigo - Carlos Alberto Sardenberg |
O Estado de S. Paulo |
25/9/2006 |
A história é antiga e vale pela frase que ficou. Estamos em setembro de 1982, o então senador Franco Montoro, candidato a governador, conduz o MDB a uma vitória arrasadora em São Paulo. A poucos dias das eleições, num momento de relaxamento num jatinho, voltando de mais um animado comício, Montoro pergunta a Mário Covas, candidato a deputado federal: "Acha que ainda podemos perder esta eleição?" Covas: "Só se a gente fizer alguma coisa muito errada, na frente de muita gente." Pois o PT e os companheiros de Lula fizeram. Não quer dizer que o presidente vá perder a eleição, mas quer dizer que eles fizeram a única coisa que poderia pô-la em risco. A frase de Covas dizia isso: a oposição, os outros, não poderia fazer mais nada diante da votação consolidada de Montoro. Nessas circunstâncias, só mesmo o próprio Montoro ou pessoas muito próximas poderiam produzir os fatos negativos. Exatamente como agora. Muitos tucanos e pefelistas já haviam jogado a toalha e concentravam suas atenções em 2010. Quem conduziria a volta ao poder depois de oito anos de petismo, José Serra ou Aécio Neves? Esse já era o tema dominante, pois se entendia que Lula, sendo ele muito maior que o PT, não conseguiria formar um sucessor. O mercado e os meios econômicos pensavam do mesmo modo e estavam até animados com isso. Achavam que se formava no horizonte uma boa combinação para aprovar as reformas estruturais que haveriam de tirar o Brasil desse marasmo de crescimento baixo. Eis a lógica: reeleito, Lula certamente teria interesse em fazer um governo de crescimento econômico. Estando ele convencido da eficiência da receita Antonio Palocci (por cuja eleição o mercado torce abertamente), e dada a convergência de boa parte dessa receita com a de tucanos e pefelistas, estaria aberto o caminho para a formação, no Congresso, das maiorias necessárias à votação de reformas (previdenciária, tributária, judiciária, política e microeconômica). Que estímulo teria a oposição para colaborar com tal projeto? Limpar a área, eliminar os entraves e deixar o País pronto para a arrancada de 2010. Simples, não? Aí vêm os "malucos e imbecis" do PT, como classificados por Lula na entrevista de sexta-feira à Rádio CBN, e armam o grande desastre do dossiê. Como fica o quadro depois disso? É especulação, claro, pois tudo depende do andamento das investigações e, sobretudo, da divulgação de seus resultados. A origem do dinheiro é um fator crucial. Esclarecer isso está nas mãos do Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda e que já se prestou a serviço duvidoso quando expediu documentação alertando para a movimentação atípica na conta do caseiro Francenildo Santos Costa na Caixa Econômica Federal. Quer dizer, o Coaf era capaz de estranhar os R$ 30 mil do caseiro, mas não desconfiara dos milhões sacados no valerioduto. Pela lei, qualquer saque no valor ou acima de R$ 10 mil deve ser comunicado, no mesmo dia, ao Coaf. Em casos de saques abaixo disso, os bancos têm a orientação do Banco Central de também comunicar movimentações atípicas e/ou suspeitas. A comunicação bancos-Coaf é eficiente, feita pelo moderno correio eletrônico do sistema do Banco Central. Pela numeração das notas, a Polícia Federal já havia identificado os bancos onde foram feitos os saques do dinheiro apreendido com os petistas que iam comprar o dossiê Vedoin. Um simples rastreamento nos comunicados expedidos pelos três bancos encontraria, se já não encontrou, os nomes de quem sacou e de quem pagou. O mesmo vale para os dólares. A polícia e o banco central dos Estados Unidos podem rastreá-los. Portanto, essa informação só não virá a público rapidamente se o governo não quiser e/ou se conseguir manobrar a Polícia Federal. É claro que o dano a Lula será tanto maior quanto mais próximo ele estiver dos que pagaram e dos que sacaram. Se essa informação sair antes da eleição de 1º de outubro, é uma coisa, se sair depois, é outra. Acrescente-se a isso que o cenário externo deu uma piorada. Aumentou o temor de uma desaceleração mais forte da economia americana, o que reduziria a atividade pelo mundo afora. Se o consumidor americano compra menos, as fábricas chinesas produzem menos e todos vendem menos. Qual o tamanho dessa desaceleração, ainda não se sabe. Mas se sabe que o cenário externo espetacular dos últimos quatro anos não se repetirá. Tudo considerado, como ficamos por aqui? Para muitos, não mudou o essencial. Lula ganha, talvez num segundo turno, e aí se recompõe aquele cenário de composição, o petista querendo fechar bem seus oito anos, os tucanos e pefelistas querendo preparar o País para sua volta em 2010. Parece muito otimista. O escândalo do dossiê é muito grave. Mostra, como nunca, a sem-cerimônia com que petistas ocuparam o aparelho de Estado e a falta de escrúpulo no uso do dinheiro público. Levaram ao limite a idéia de que os fins justificamos meios. Na sua defesa, Lula, de um lado, trata de se afastar dos seus "loucos e imbecis", mas, de outro, acirra a disputa ao denunciar uma conspiração das elites e da direita contra o operário do povo. Não tem pés nem cabeça. Então os petistas, sozinhos, fazem a coisa muita errada e a culpa é das elites? Mas, se Lula vencer com esse discurso - e sabemos como discursos populistas podem pegar -, vencerá provocando uma forte cisão política. Será bem diferente da consagração que esperava antes do escândalo e que o colocaria, aí sim, em posição de liderar uma ampla coligação. Agora, ficou muito diferente. Mesmo que ele vença no primeiro turno, os inquéritos continuarão, os processos chegarão aos tribunais, o presidente precisará estar se defendendo o tempo todo, de novo recorrendo ao "povão contra as elites". Ele precisará, então, menos de reformas impopulares e mais de Bolsa-Família, salário mínimo e bondades para o funcionalismo - danem-se as contas públicas! Será o triunfo daquele pessoal que nunca gostou da política econômica. As oposições, obviamente, vão cobrar a conta - e o ambiente se tornará hostil. Isso levará a uma paralisia política, um Congresso sem capacidade de negociação e decisão, como ocorreu desde a crise do mensalão. A coisa se complicou. |
Entrevista:O Estado inteligente
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