Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 03, 2006

DANIEL PIZA

ESTADO

Literárias

daniel.piza@grupoestado.com.br www.danielpiza.com.br

Escritores iniciantes se aborrecem de ser comparados com grandes nomes do passado. Muitos acreditam na teoria do saudoso crítico, tradutor e poeta José Paulo Paes de que as obras-primas só podem surgir num meio em que há farta literatura de “entretenimento” que crie leitores e, pois, massa crítica. Têm uma razão parcial: não se pode querer de cada estreante que seja um novo gênio - ainda que tantos sejam anunciados como tal, porque a mídia está sempre ansiosa por novas modas e mitos - e muitos autores prejudicam a si mesmos com a ambição de fazer de largada um calhamaço que dividirá a história da literatura em antes e depois. Mas as explicações sociológicas são sempre insuficientes. Muitas obras de arte extraordinárias nasceram em circunstâncias ordinárias, em locais até de pouca tradição e escasso mercado.

O que um grande escritor não pode deixar de fazer - nem jamais deixou de fazer - é ler os clássicos. Pense em Hemingway, que gostava de posar de esportista antiintelectual: sua biblioteca em Key West tinha todos os “faraós” que a inteligência requer. Machado de Assis era um leitor exemplar, que entendia diversos idiomas e cultivava em especial a filosofia. Muitos no Brasil, infelizmente, começam a escrever sem conhecer os clássicos, como se atesta na última página deste caderno, na seção Antologia Pessoal. Lêem Rubem Fonseca, mas não Raul Pompéia. Lêem Paul Auster, mas não Marcel Proust. Ao desconhecer as cadências do Padre Vieira ou de Pedro Nava, pois usam a maior parte de seu tempo para ver filmes e seriados, ignoram como renovar de verdade a tradição. E escrevem todos no mesmo estilo primário e convencional.

Quem ganha, antes de mais nada, com o acesso a clássicos bem editados é o leitor, cansado de só encontrar livros feios e/ou didáticos. Pode-se abstrair o mau gosto da tipologia, da capa e do papel de um romance e extrair dele enorme prazer, como foi meu caso quando li pela primeira vez Crime e Castigo, de Dostoievski, naquela horrenda edição de bolso vermelha da Ediouro. Mas, quando o livro é bonito, esse prazer físico, tátil, se integra ao prazer de ler. Os contos de Machado de Assis, por exemplo, vêm recebendo edição muito agradável da Martins Fontes; a mais recente é Contos Fluminenses (preparada por Marta de Senna). E agora Guimarães Rosa, outro não muito bem tratado pelos designers desde os volumes ilustrados por Poty, é devidamente homenageado pela Nova Fronteira com edições comemorativas dos 60 anos de Sagarana (com borda irregular de papel, ao estilo da maravilhosa coleção Borzoi da editora Knopf) e dos 50 anos de Corpo de Baile, em dois volumes, como no original, e dentro de caixinha.

Com exceção do Suplemento Literário de Minas, não tenho visto muitas referências ao centenário de Cyro dos Anjos, autor de outro clássico brasileiro, O Amanuense Belmiro (1937), muito pouco lido na atualidade. Antonio Candido o colocou entre os dez maiores livros de ficção brasileiros, coisa que eu não faria (ele também colocou Esaú e Jacó, de Machado, como o número 1, o que eu jamais faria), mas há um sabor machadiano nesse diário, em suas metáforas melancólicas: “(...) hoje dormimos arlequim, amanhã acordamos pierrô. As vestes ficam guardadas num armário de nossas profundezas onde se amontoam indumentos de infinita variedade. Alguém no-las troca sorrateiramente, durante o sono, de acordo com um critério que nos escapa. E esse alguém às vezes se diverte, pondo-nos de casaca e em cuecas, ou pregando-nos um rabo de papel no jaquetão. O fato é que se frustra todo o esforço que despendemos para nos impor certa disciplina, certa unidade, certa coerência. (...) e amanhã seremos o que não queremos.” Para Candido, esse era o livro de um homem culto e um consolo para a ficção mais ou menos frouxa daquele tempo...

Há escritores que produzem só um grande livro em toda a vida, caso de Cyro dos Anjos, e não há problema algum nisso. Há escritores que escrevem muito e, como Balzac, fazem um livro melhor que o anterior, ao contrário da crença de vários autores brasileiros de que o grande criador é lento. Nelson Rodrigues é desta trupe: produzia contos e crônicas no meio da bagunça da redação de jornal, todo dia. A editora Agir produziu agora uma bela capa com letras em relevo para os cem melhores contos de A Vida como Ela É..., cuja leitura é fundamental para entender o maior dramaturgo brasileiro. Lamento, mas vou contar o desfecho de uma das histórias para ilustrar: a mulher adverte o noivo para que não se enamore da cunhada, mais nova e bonita que a irmã; com isso, chama a atenção dele, que acaba sendo tentado por ela; para se purgar, ele a mata, o que provoca o júbilo da noiva. Nessa mistura de sagrado e profano com boas pitadas de humor negro, Nelson cria um universo de culpas e desejos ocultos que só a expiação brutal salva. Por ser reacionário, foi revolucionário: destruiu o mito da suavidade brasileira.

Curiosamente, parece que estamos assistindo agora uma volta à crença na experimentação formal, certa inquietude visual que não poucos clássicos trazem (de Dom Quixote a Brás Cubas). Num livro como Extremamente Alto, Incrivelmente perto, Jonathan Safran Foer acrescenta fotos, risca palavras, lista números. Em Por Acaso, de Ali Smith, versos se intercalam à narrativa, brancos são espalhados pela página. Em Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, alguns capítulos têm meia dúzia de linhas. O mesmo acontece em História de Amor, de Nicole Krauss, esposa de Foer. Mais de cem anos depois do surgimento da arte moderna, os elementos gráficos voltam a ter importância? De certo modo, sim, mas não com os resultados que eu gostaria. Foer, por exemplo, bebe em W.G. Sebald, o grande escritor alemão que usava fotos em seus livros que fundem memória e ficção, mas Foer não tem um décimo da concisão de Sebald, de sua visão de mundo quase estóica. Os outros têm problemas semelhantes. Desconfio que o fenômeno, além de denunciar uma necessidade de se desviar da eficácia seqüencial do cinema, esteja mais ligado às facilidades que o computador propicia - o deslocamento de blocos de texto, por exemplo - e aos avanços da tecnologia gráfica. Também é preciso lembrar que grandes inovações formais podem ocorrer debaixo de uma superfície lisa e cristalina, como em Kafka.

Um bom exemplo de ficção experimental que não se sustenta na facilidade é Os Detetives Selvagens, do chileno Roberto Bolaño (Companhia das Letras), morto há três anos e, como o argentino José Juan Saer, cada vez mais cotado como clássico recente. Bolaño não exagera na experimentação, pois, como a de Joyce, sua literatura tem furor narrativo, interessada especialmente nas histórias que correm dentro das cabeças de seus personagens; e, apesar dos longos parágrafos e das numerosas citações, a pontuação é ortodoxa e há nexo entre os acontecimentos e só no final é que a forma de diário e alguns desenhos são usados. Mas o livro é muito extenso, e chega uma hora em que não queremos mais saber das picuinhas do meio intelectual mexicano, tão provinciano como o brasileiro, em que os escritores parecem ter optado por esse ofícios por sua incapacidade para a vida real, sua dificuldade de praticar esportes e conquistar mulheres. E fazem, com exceções, uma literatura de recalque.

Então vamos verter uma lágrima para Naguib Mahfuz, o escritor egípcio morto nesta semana aos 94 anos, conhecido no Brasil pelas traduções mais recentes, O Beco do Pilão e Noites das Mil e Uma Noites, mas que se tornou um clássico mesmo com a “trilogia do Cairo”: O Palácio do Desejo (o melhor), Entre Dois Palácios e Açúcar, que lhe valeram o apelido de Balzac ou Dickens do Cairo. A força de sua originalidade vem da fusão da narrativa oral árabe com o romance moderno, de personagens críveis, de sua captação da sociedade e seus costumes e preconceitos. Descrever os semelhantes ainda é, afinal, a função maior da literatura. Quando clássica, é porque descreve a todos nós.

POR QUE NÃO ME UFANO

O cineasta Fernando Meirelles pede para esclarecer que foi convidado para o evento dos artistas com Lula no Rio e recusou imediatamente. “Não conseguiria nem sequer suportar a proximidade deste que é atualmente o campeão de cinismo no Brasil.” Não escrevi que Meirelles esteve no evento, mas que a frase de Wagner Tiso - como o caixa 2 é praxe no Brasil, o PT não pode ser punido - ecoou o que ele declarara em agosto de 2005. Meirelles diz que o contexto era outro: “Na época ressaltei o oportunismo da oposição ao defender que o PT fosse punido, quando na verdade acreditava que todos deveriam sofrer a mesma punição.” E se explica melhor agora: “Repudio veementemente qualquer prática de uso de caixa 2, considero todos os mensaleiros criminosos, me enoja o atual Congresso, sofro ao ver o aparelhamento do Estado promovido pelo PT e seu bando e constatar a incompetência com que hoje é governado nosso país.” Fecho: “Eu diria que, se caixa 2 é praxe, a punição severa é a única saída. O PT e o Lula deveriam pagar pelo que fizeram, assim como todos os partidos contra os quais haja provas.”

Arquivo do blog