Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 24, 2006

DANIEL PIZA


O plano quase perfeito

Daniel Piza daniel.piza@grupoestado.com.br www.danielpiza.com.br

Todo mundo lançou mão do trocadilho 'Freud explica' ao saber que um dos envolvidos na compra & oferta de suposto dossiê contra José Serra era nada menos que o assistente pessoal do presidente Lula, Freud Godoy. O que faltou examinar é como Sigmund Freud explicaria. O 'como', afinal, é tudo, na frase do personagem de Clive Owen no filme O Plano Perfeito, de Spike Lee. Bem, me parece claro que o mecanismo em questão é a projeção, o ato de uma pessoa atribuir a outra aquilo que se origina nela mesma. Exemplo que vem muito a calhar: um sujeito que diz que 'ninguém é 100% honesto' não está fazendo uma análise objetiva da humanidade, por mais plausível que seja; está tentando justificar sua própria desonestidade ao projetá-la nos outros.

É essa reação curiosa que vemos nos petistas e seus simpatizantes toda vez que um deles é flagrado em delito. Se crimes foram praticados, conforme provas documentais e testemunhais, é porque são 'praxe' no sistema político brasileiro; daí a frase 'A culpa é do sistema', por sinal um velho bordão do esquerdismo. Foi assim no caso do caixa 2, que Lula reconheceu existir em seu partido antes mesmo que a Justiça apontasse a contravenção ou a Polícia Federal a flagrasse. (No entanto, na hora de proteger seus amigos no varejo, ele sempre diz que é preciso esperar a sentença oficial - uma contradição que deliciaria Freud, o legítimo.) Foi assim no momento em que os extratos do BMG e Rural demonstraram o benefício a vários políticos do PT e partidos aliados por meio de um empresário vencedor em licitações.

E foi assim agora, depois que uma série de petistas perdeu seus cargos partidários e/ou oficiais - inclusive um ex-ministro, Ricardo Berzoini - por causa da articulação de uma denúncia contra o PSDB, provável vencedor nas eleições estaduais de São Paulo. Os defensores dizem que é 'falso moralismo' atacar o PT e o governo porque, afinal, produzir dossiês, dedurar movimentações ilegais de dinheiro e fazer tráfico de influência são atitudes corriqueiras numa política dominada por ACMs e Sarneys - que os tucanos também praticam; que, aliás, políticos em toda parte praticam. Ou seja: os petistas que tanto criticavam a falta de ética quando era oposição faziam, em termos freudianos, uma projeção de si mesmos.

Esse recurso narcisista não consegue ocultar alguns fatos. Primeiro, que num país de Judiciário lento e clientelista pode ser difícil comparar corrupções (quem roubou mais, quem começou, etc.), mas não dá para negar que nem no governo Collor tanta baixaria foi comprovada de modos tão consistentes. Alguns ingênuos podem dizer que é porque hoje a corrupção está sendo mais investigada. Então pergunto: isso é motivo para deixar de puni-la? E não é assim, com respeito às provas, que se procedem julgamentos? Por muito menos, Nixon teve de renunciar à Presidência dos EUA. Sim, corrupção existe em todo lugar; o que muda de endereço é a impunidade.

Há, aí, um paralelismo ao qual o dr. Sigmund daria importância enorme, fã que era dos lapsos e fetiches: muitos dos crimes que estão sendo cometidos neste governo são aqueles que foram ou teriam sido cometidos no governo FHC. Se no governo anterior houve compra de votos para reeleição, neste houve o mensalão. Se houve 'privataria', agora houve o aparelhamento das estatais e fundos de pensão por sindicalistas e ONGs - o 'estatelionato'. Se altos funcionários tucanos foram pegos em diálogos ou favores suspeitos, o Palácio do Planalto lulista se tornou um dominó de demissões incontornáveis, sala a sala. Se tivemos um tal dossiê Cayman, temos hoje os dólares 'offshore' de Duda Mendonça. E assim por diante. Os fantasmas que assombravam os petistas ganharam carne e osso - sua própria carne e seu próprio osso.

Outro fato ignorado pelos que anistiam o PT é o de que ele foi eleito para acabar com isso. Por que, ao assumir, não apurou todos esses escândalos que lhe fizeram gritar 'Fora FHC!' tantas vezes? Queremos, sim, saber como Serra não detectou a ação da máfia sanguessuga em sua gestão no Ministério da Saúde, ou se dela se valeu, assim como Barjas Negri. Queremos saber isso, porém, não apenas porque ficou evidente a extensão dela na gestão de Humberto Costa. Além disso, como se tem mostrado nas mais diversas prefeituras, o PT não 'aprendeu a roubar' ou 'precisou meter as mãos na merda' a partir de 2003.

A corrupção que se vê consegue ser ainda mais sistemática e descarada do que a que nem sempre se via. Mas, para a maioria da população, que também faz projeção freudiana em Lula - aquele que 'chegou lá', mas nunca sabe de nada até que precise 'afastar' o traidor - ou por ele alivia a culpa social, isso não importa muito, pois 'todos roubam'. Lula foi eleito porque seria bem diferente. Se reeleito, será por ser quase igual.

UMA LÁGRIMA

Para Sven Nykvist, fotógrafo de cinema, sueco, morto aos 84 anos. Ele nasceu no ano modernista de 1922 e ajudou a levar para o cinema as sombras e descontinuidades dessa estética. Com Bergman, podia fazer o jogo de focos de Persona ou o banho de cores de Gritos e Sussurros. Com Woody Allen, criou o granulado que Crimes e Pecados pedia. O sinal de sua grandeza é que, sem sua fotografia, os filmes perderiam boa parte do sentido.

DE LA MUSIQUE

Muitas mensagens sobre o declínio da MPB. Há um lamento geral dos admiradores. Alguns observam que há talentos como Guinga e André Mehmari, sobre os quais tenho escrito aqui, mas é importante notar que, ao contrário de Chico, Caetano e companhia, eles não conseguem o feito de chegar ao público amplo e ao sofisticado ao mesmo tempo; não são muito ouvidos nas rádios ou assobiados nas ruas. Outros notam que hoje há diversos gêneros disputando espaço e que em outras artes, como a literatura e o cinema, tampouco temos nova geração equivalente. É verdade até certo ponto. Eu queria ver um compositor que mesclasse acesso emocional e refinamento formal como Milton Hatoum na ficção ou Fernando Meirelles no cinema. Um leitor disse que comparar com grandes nomes é um peso desnecessário. Não; é assim que a cultura se produz, na relação exigente entre gerações.

Sobre o CD de Bob Dylan, Modern Times: se o criador de Hurricane tampouco está à altura de seus melhores anos, há nas novas canções uma releitura interessante de sua origem no folk, no country e no r&b. Spirit on the Water, que virou videoclipe com Scarlet Johansson, e Ain't Talking trazem uma pegada rítmica, de canto-falado, que agrada já na primeira audição. Mas é Workingman's Blues # 2 a grande faixa do disco. O que era protesto vigoroso ganhou um toque melancólico, mas sabemos de que lado Dylan está: 'Ou você se esconde atrás ou luta ao máximo na linha de frente', diz o refrão. E fica.

CADERNOS DO CINEMA (1)

Em O Diabo Veste Prada, de David Frankel, é possível ver o artifício que Hollywood domina tão bem de fazer a um universo específico uma crítica e um elogio ao mesmo tempo. O filme tenta fazer uma mistura de Bonequinha de Luxo com Sex and the City e não consegue por não ter a graça do primeiro nem o veneno do segundo. Mas diverte pela sátira leve que faz ao narcisismo do mundinho fashion, contando em especial com a atuação de Meryl Streep (uma editora de moda arrogante, como Anne Wintour, e que não precisa gritar para ser desagradável), e pela qualidade das roupas - desfiladas por Anne Hathaway, que embora não tenha o cosmopolitismo de Audrey Hepburn nos seduz por sua beleza e elegância. Estilista bom não faz roupa só para mulher-cabide.

CADERNOS DO CINEMA (2)

O argumento de O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues, já embute todos os seus problemas. Para fazer valer sua tese, é preciso que o protagonista (José Wilker) seja um astrofísico ateu, radicado nos EUA e sexualmente inexperiente; é preciso que ele esteja em busca da mãe biológica numa favela de sujeira cenográfica e seja ajudado por um menino de boa índole metido no narcotráfico; é preciso que ele descubra a felicidade ao transar com uma negra belíssima (Taís Araújo); e é preciso que desça ao inferno ao som de Tristão e Isolda e com cenas de realismo mágico para se redimir e renascer. Eis, assim, a tese: brasileiros não são travados, racistas e racionalistas, mas espontâneos, tolerantes e apaixonados. Se o país tem problemas graves, também tem qualidades únicas. E tome clichês.

POR QUE NÃO ME UFANO

O Clube dos Polianas, que acha que o Brasil já atingiu a maturidade democrática, também defende a tese de que hoje a economia não depende da política, protegida pela arquitetura de suposta racionalidade técnica. É como se o crescimento medíocre do PIB nada tivesse a ver com a política econômica dos últimos 12 anos, baseada em juros altos e impostos crescentes. É como se os gastos 'sociais' e a falta de investimentos em infra-estrutura e inovação não fossem cobrar, cedo ou tarde, seu preço alto.


AFORISMOS SEM JUÍZO

Ele não conseguia ganhar as garotas, não era bom no futebol e não sabia fazer contas. Virou escritor.

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