Uma rara vitória do bem comum sobre o
interesse privado ocorreu em São Paulo
Um sinal de que nem tudo está perdido foi dado na semana passada em São Paulo com a aprovação de uma lei municipal que proíbe a propaganda nas ruas da cidade. Foi uma rara vitória do interesse público sobre o privado, da ordem sobre a desordem, da estética sobre a feiúra, da limpeza sobre a sujeira. Por uma vez na vida, tudo o que costuma vencer, no Brasil, perdeu. Quando o projeto de lei foi pela primeira vez apresentado pelo prefeito Gilberto Kassab, a experiência recomendava que todo ceticismo seria pouco. Era bom demais para ser verdade. Na semana passada, a Câmara Municipal, que goza de merecida má fama, e não é o foro de onde se esperaria maior resistência às forças do interesse privado, da desordem, da feiúra e da sujeira, votou surpreendentemente a favor, pelo esmagador placar de 45 votos a 1.
A lei proíbe outdoors, faixas, painéis eletrônicos, banners e qualquer outro tipo de publicidade nos espaços públicos, mesmo a afixada em táxis e ônibus e até em balões suspensos e helicópteros. Diante da dificuldade de entrar em minudências sobre o que é mais e o que é menos nocivo, o que poderia continuar e o que seria proibido, em que condições, em que locais e em que medida, a prefeitura acabou tomando a inspirada decisão de proibir tudo. Os responsáveis têm até o fim do ano para cumprir a lei. No futuro, de acordo com projeto ainda a ser elaborado, a publicidade será permitida apenas no chamado mobiliário urbano – pontos de ônibus, bancas de jornais, lixeiras, relógios e banheiros públicos.
Em outra frente de combate, a lei regulamenta as dimensões e a altura dos letreiros que identificam estabelecimentos comerciais. O McDonald's não poderá fincar o totem onde espeta o "M" que o identifica a mais de 5 metros de altura, o máximo permitido para esse tipo de suporte. Padarias e açougues, mas também lojas de grife e bancos, terão de adaptar-se à regra de que, para uma área de 10 metros de fachada, o tamanho máximo do letreiro deverá ser de 1,5 metro quadrado e, para uma área entre 10 e 100 metros de fachada, o máximo permitido será de 4 metros quadrados.
São Paulo é uma cidade que nasceu distante e desamparada. Foi a primeira cidade brasileira do interior e, por isso mesmo, durante a maior parte do período colonial, a menos contemplada, tanto pelo apoio quanto pela vigilância da metrópole. Quando despertou de seu longo sono e começou a crescer, na virada do século XIX para o XX, o fez de modo alucinado. Saltou de 65.000 habitantes, em 1890, para 240.000 em 1900 (aumento de 3,5 vezes em dez anos), 590.000 em 1920 e 1,3 milhão em 1940, para não falar nos números mais recentes. Tais circunstâncias fizeram dela o lugar ideal para o caos se instalar. Ele se instalou com gosto e volúpia. Na questão que é objeto da nova lei, São Paulo foi tão tomada de assalto pela poluição visual quanto as cidades indianas pelos mendigos e as chinesas pelas bicicletas. Se São Paulo tivesse uma Torre Eiffel, um anúncio luminoso seria pendurado na ponta. Se tivesse um Pão de Açúcar, cartazes lhe cobririam a encosta. Vá se querer enxergar uma cidade na barafunda de imagens de que foi revestida.
Forças poderosas mobilizaram-se contra a nova lei. Na linha de frente figuraram as empresas de publicidade e a Associação Comercial. Claro que se recorreu ao argumento, meio chantagista, tão comum quando interesses privados confrontam com o bem comum, da perda de empregos que representaria a desmobilização daquilo que nos meios especializados é conhecido como "mídia externa". Também o combate ao lenocínio ou ao narcotráfico representa ameaça a empregos. Num setor forte como o publicitário, quando um canal de expressão é fechado se abrem ou se alargam outros, o que significa que novos empregos acabam por substituir os antigos. A própria perspectiva apontada pela prefeitura, de concentrar a publicidade no mobiliário urbano, já cria a compensação de oferecer suportes publicitários que, por serem mais raros, e não estarem submetidos à concorrência selvagem característica da atual permissividade, despontam com um potencial de muito maior valor do que o dos meios atuais.
Não há só ganância, há também burrice na defesa do panorama que emporcalha a cidade. A brutal concorrência entre os diversos anúncios lhes rouba o efeito. Em certas ruas, em especial as de comércio popular, letreiros, placas, faixas, cartazes e bandeirolas encobrem uns aos outros. Argumentos como esses não apaziguaram os opositores da nova lei. Derrotados no lobby que exerceram durante o período de tramitação, eles se preparam agora para ações na Justiça. Também contam com a possibilidade de a Câmara vir a atenuar as proibições quando votar a prometida lei do mobiliário urbano. São indicações de que é cedo para festejar. Caso a nova lei venha a ser derrotada na Justiça, desfigurada pela tibieza da prefeitura ou da Câmara, ou fulminada pela síndrome tão brasileira das leis que "não pegam", será, depois das esperanças que despertou, sinal de que tudo está, sim, perdido.
Entrevista:O Estado inteligente
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