“Solta Pedro I o grito do
Ipiranga. E o caboclo, em
cócoras. Vem, com o 13 de Maio, a libertação dos escravos; e
o caboclo, de cócoras. Derriba
o 15 de Novembro um trono,
erguendo uma República; e o caboclo, acocorado. (...) A cada um desses estrondos, soergue
o torso, espia, coça a cabeça, ‘magina’, mas volve à
modorra e não dá pelo resto.”
Com esta imagem de Jeca Tatu, Rui Barbosa abria, em 1919, uma conferência no Teatro Lírico do Rio de Janeiro sobre a questão social e política no Brasil. O perfil do capiau que “vegeta de cócoras” fora inicialmente traçado por Monteiro Lobato em dois artigos para este jornal, em 1914. Lobato, fazendeiro em Taubaté, tornou-se escritor, pediu desculpas por ter ofendido Jeca Tatu e escreveu novas histórias dando conta de que aquela figura, sinônima de ingênuo, curou as doenças, comprou uma fazenda e ficou rica. Infelizmente, o Jeca, que o velho Rui elegeu como símbolo da incúria dos governos, continua impassível e de cócoras. Fez apenas algumas melhorias na casinha de sapé onde guarda migalhas que abastecem o vazio do estômago.
Quanto mais Jecas Tatus, mais fortes as mãos que levam cestas básicas. Por aqui começa a explicação para a recorrente e inquietante pergunta do momento: como é que pode um país conviver com tantos escândalos, com tanta podridão, com tantos achaques, com tanta leniência, e ainda se dar ao luxo de se considerar avançado e pleitear um lugar nos foros ocupados por nações do Primeiro Mundo? Como se explica o fato de o mandatário-mor, acossado mais uma vez por situações rocambolescas e abomináveis, perpetradas por assessores mais chegados, como a compra de dossiês para prejudicar adversários, continuar imune ao repertório de perfídias, conchavos, negociatas, fraudes e mentiras abrigadas em seu governo? Como o candidato à reeleição continua impávido no alto de 56% de votos válidos, quando a tempestade devasta pessoas que, até há bem pouco, privavam de sua intimidade? Por mais que se diga que político é tudo igual e que a pilantragem, ontem como hoje, escorre pelos desvãos da República, não seria, no mínimo, um contra-senso eleger - e eleger bem - pessoas que acabaram de ser defenestradas da vida pública e voltam a pedir voto pelo bem do povo e felicidade geral da Nação? Como se explicam os “grampos” colocados na sede da nossa maior Corte Eleitoral, no momento em que os magistrados se esforçam para promover um choque de moralidade nos costumes eleitorais? Chegamos à perfeição em matéria de paradoxo: grampear a Justiça.
Mas, no Brasil, isso é fichinha. Do vilão que se transforma em herói ao nome digno que se joga na cesta do lixo, a distinção é imperceptível. O olhar nacional se acostumou à escuridão. Como ensinava Adam Smith, uma vez que nossa visão sobre estética é influenciada por usos e costumes, não se pode esperar que percepções relativas à beleza de conduta estejam inteiramente isentas do domínio desses princípios. Quem enfrenta o infortúnio de ser criado no meio da violência, licenciosidade, falsidade e injustiça se acostuma a aceitar quem pratica tais monstruosidades. Familiarizadas desde a infância com os vícios, as pessoas se predispõem a considerá-los naturais, como se fossem o “jeito do mundo”, algo que pode e deve ser por elas praticado. Essa disfunção está por trás do estado de devassidão que toma conta do País. E que recebe versões exóticas de intelectuais de porte, como Marilena Chauí, que chega ao exagero de reconhecer nestas eleições “uma auto-afirmação das classes populares”. Ao contrário do que diz, a realidade não é mais forte que o simulacro. Quando o governo constrói gigantesca rede de cooptação fisiológica, focada no impulso alimentar, não abre o pulmão da cidadania. Ao contrário, age para manter o status quo. A realidade social, esta sim, é o próprio simulacro.
Que fique bem claro: se “a nossa montanha é vítima de um parasita”, como Lobato aludia nas primeiras letras sobre o Jeca Tatu, que considerava inadaptável à civilização, hoje o parasita é o governo, e não o caboclo que mora numa casa de taipa, tem oito filhos para sustentar, uma roça onde cultiva feijão (quando chove) e uma mulher que requenta restos de comida. Compara-se a um chupim quem se alimenta da miséria do povo. Ou quem desfila sua exuberância eleitoral na passarela do cordão de miseráveis jogados no curral de bolsas e cestas assistencialistas. Um povo subordinado, dependente, tem uma única lógica: votar nos governantes dos quais depende. Chega-se, assim, ao dossiêgate e à inferência: Lula poderá até descer um pouco do lugar onde se encontra, mas continuará firme na rota do segundo mandato.
Outra resposta para as grandes interrogações que se fazem está no papel da Justiça. O País presenciou, nos últimos meses, uma coleção de escândalos cabeludos. Infelizmente, a Justiça não conseguiu dar vazão aos indícios criminosos que bateram às suas portas. E as perguntas afloram. Como podem perfis atolados na lama emergir tão depressa? Se eleitos, ganharão status mais confortável para se defender. Como se explica o fato de o PT patrocinar outro escândalo, quando se pensava que a crise do mensalão tivesse dado definitiva lição ao partido? Como se explica a “burrice” da área de “mídia e risco” da campanha, chefiada pelo churrasqueiro-mor da Granja do Torto, não pensar que a compra de um dossiê poderia acabar chamuscada? Mas, no Brasil, o tempo funciona como borracha de catástrofes. Inquietação, incredulidade e perplexidade cairão no limbo. Após o impacto sobre setores médios e formadores de opinião, o tsunami desaguará nas margens sem a força inicial. A cada estrondo, o caboclo soergue o torso, espia, coça a cabeça, “magina”, volve à modorra e não dá pelo resto.
Entrevista:O Estado inteligente
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