Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 30, 2006

Lya Luft Perfil de um líder

"O líder nunca favorece uns em detrimento
de outros, sejam despossuídos, sejam
privilegiados. Ele não pode ser pai dos
pobres nem mãe dos ricos"

"Fica bom com ovos", dizia meu velho pai, que era sábio e tinha bastante bom humor, referindo-se a uma pessoa sem maiores dotes além de ser "uma boa pessoa". E explicava: "É como aquele resto de comida que você tem na geladeira, quer aproveitar porque não está estragado, então mistura com ovos, mexe tudo numa frigideira, e até que fica bom".

Para nós, escolhendo novos líderes neste momento gravíssimo, isto é, deputados, senadores e governadores, além daquele que administrará boa parte de nossa vida – o presidente da República –, é hora (com atraso, aliás) de refletir sobre o perfil de quem desejamos que nos governe. Ser uma pessoa honrada é um primeiro requisito, nem precisa mencionar. Ninguém quer ficar nas mãos de alguém desonesto. Mas também precisa ser competente, informado, equilibrado e enérgico. Respeitável e respeitador. Exemplar. Um bom líder tem de ser austero, nunca deslumbrado, e manter sua família na mesma postura. Ele precisa, sim, servir de exemplo para o povo: porque o chefe (como o pai) é modelo – mesmo que não queira. Um líder tem de ser preparado para seu trabalho: boa vontade não basta, carisma eventual idem. Preparo significa sabedoria, conhecimento, cultura geral, noção dos grandes temas nacionais e internacionais, capacidade intelectual para enfrentar problemas. Da capacidade emocional nem se fala, pois, se não for calmo e forte, vai se perder depressa. Alie-se a isso muita vivência em cargos assemelhados, ainda que em escalões mais baixos – ele terá acumulado experiência, pois a prática nos ensina mais que a teoria.

O líder nunca favorece uns em detrimento de outros, sejam despossuídos, sejam privilegiados. Nem faz demagogia, porque isso o diminui, nem abraça os poderosos, pois ele não pode ser pai dos pobres nem mãe dos ricos. Deve ter uma noção bem clara de que, numa democracia, povo não são apenas os menos afortunados, mas todos: se eleito, afinal, é de todos que ele vai precisar.

Se não roubar pessoalmente, que não seja cúmplice de ladrões; não sendo um canalha, que seja rigoroso com eles; e, se não for corrupto, não poderá ser, de modo algum, amigo ou companheiro de corruptos. Nem deverá rodear-se de pessoas assim, pois entre suas imensas responsabilidades está a de escolher bem, de estar alerta e extremamente bem informado quanto a sua equipe.

Qualquer líder precisa ter discernimento: capacidade de conhecer as pessoas para escolher com dedo seguro os que vão assessorá-lo e estar perto dele: amigos, subordinados diretos, auxiliares, os que vão freqüentar sua residência ou o palácio, ter ali salas de trabalho, circular e aparecer ao lado dele. Como o pai não pode saber tudo o que os filhos fazem no quarto ao lado, talvez ele também não possa saber com detalhes o que se passa a seu redor. Porém, tem o dever de saber quase tudo. Funcionário, em qualquer posto, não deve ser admitido sem ficha limpíssima e grande capacidade. E, se tiver cometido infrações sérias, não poderá ser mantido no seu posto nem despedido para inglês ver e depois receber consolo ou compensação longe do público.

Quando surgirem escândalos ligados a seus amigos e colaboradores, que ele nem pense na pífia desculpa de que não sabia de nada, que foi traído – sobretudo se o problema se repetir. Vocação para traído revela fraqueza e irresponsabilidade.

O líder que há um tempo nos governa e nos serve não pode fugir de suas tarefas, entre as quais está, na primeira linha, verificar e controlar com pulso firme a dignidade e a clareza de todos os procedimentos. Por isso, o líder não se esconde atrás de outros que se responsabilizam por suas deficiências. Nem deve usar a força do cargo para tapar o sol com a peneira, para comprar silêncios e desviar atenção ou fazer ajustes de última hora em seu próprio favor.

O líder é um solitário, quase um asceta, homem ou mulher de enorme dignidade e firmeza, humilde o bastante para saber se assessorar e se aconselhar com os melhores de seu país, altivo o bastante para respeitar a inteligência alheia, até dos mais simples, e precisa ser um forte: consciente de quanto é responsável pelo que lhe foi confiado. A quem disser que delineio o perfil de um impossível herói, responderei: quem deseja o poder tem de ser assim.

Que esta eleição seja uma celebração do respeito e da esperança e o resgate de nossos valores, não a instauração da desordem oficial no reino da impunidade, pois arcamos com os gastos da festa e com os salários, tanto da cozinheira dos palácios quanto de seus moradores.

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