Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 30, 2006

Os sobreviventes da burocracia


A república do papel, que sufoca a eficiência do país, só é ruim para o cidadão comum. Para os corruptos, é uma maravilha


Chrystiane Silva


Montagem sobre fotos Getty Images e AP

Há muito se sabe que a interferência do Estado na vida dos cidadãos e empresas brasileiros paralisa a ordem econômica e cria uma cultura de submissão da população ao Estado. O empresário que decide montar um negócio no Brasil passa cinco meses, em média, preenchendo formulários, pagando taxas e percorrendo órgãos públicos até conseguir registrar legalmente uma companhia. Sem concluir essa maratona, não pode criar, produzir, vender, prestar serviços ou contratar empregados. Em suma, não consegue se auto-realizar, gerar riqueza ou conhecimento. Fechar uma empresa é um processo ainda mais demorado: pode consumir até dez anos. Na comparação internacional, o caos burocrático brasileiro beira a infâmia. Na Austrália bastam dois dias para uma companhia estar legalizada e pronta para funcionar. Na paupérrima Namíbia, são necessários 95 dias para abrir uma empresa. Não é por menos que o ambiente brasileiro de negócios ocupa a 119ª posição, à frente do haitiano e do angolano, no Doing Business, estudo do Banco Mundial que disseca e classifica as dificuldades encontradas por empreendedores em 155 países.

Isso, como já foi dito acima, já se conhece. Fala-se pouco, no entanto, sobre os motivos pelos quais a burocracia tanto resiste no Brasil. Exigências, prazos e documentos desnecessários não surgem do vácuo. É como a conhecida história do jabuti. Se ele está em cima da árvore, alguém o colocou lá – jabuti, afinal de contas, não sobe em árvore. Também é um erro ver a burocracia apenas como um produto da burrice humana. A burocracia só é burra na visão das vítimas. Ela é inteligente na outra ponta, quando protege cartórios, enriquece grupos de interesse e alimenta corruptos que sobrevivem no anonimato – e sobreviverão por pelo menos quatro anos, a julgar pela irrelevância do tema no atual ciclo de debates eleitorais. Segundo o advogado João Geraldo Piquet Carneiro, presidente do Instituto Hélio Beltrão e um dos maiores especialistas no assunto, as máfias que lesam licitações públicas são alguns dos grupos que se beneficiam da burocracia. Basta observar como a miríade de controles formais, de exigência de certidões negativas de tributos e encargos federais, estaduais ou municipais, é usada para beneficiar ou prejudicar empresas em compras públicas. Outro grupo forte de interesses é formado por despachantes e por donos de cartórios. De longe, o maior patrono da burocracia é o Estado paquidérmico, sofisticado ao cobrar impostos e lento ao devolver dinheiro aos cidadãos. A obsessão por controles fiscais, fruto da incapacidade governamental de controlar gastos públicos, estabeleceu um modo dissimulado de tirania do governo sobre a sociedade. No limite, a prática de atos elementares da vida civil depende de um estado de absoluta regularidade fiscal. "Quem deve qualquer obrigação ao Fisco, por menor que seja, está fora da economia formal, torna-se um pária. Na ordem atual, o barão de Mauá, que faliu duas vezes e enriqueceu de novo, não teria entrado para a história", diz Piquet Carneiro.

O grau de burocracia está refletido no tamanho e no peso dos governos sobre a sociedade. Nas últimas décadas, o Estado ampliou seu controle sobre a vida nacional e passou a interferir diretamente na iniciativa privada. De regulador, tornou-se promotor do desenvolvimento. O acúmulo de trâmites começou a ficar insustentável durante os anos 80, época em que foi criado o Ministério da Desburocratização, sob o comando de Hélio Beltrão. De lá para cá, algumas iniciativas deram bom resultado, como o processo de privatização das estatais, importante para diminuir a mão do Estado na economia. Mas, de maneira geral, o Brasil regrediu ao estágio de um dos países mais burocratizados do mundo. "Parece que voltamos à era do alvará régio. Para produzir e vender qualquer coisa, depende-se de autorização prévia do governo. Foi-se o rei, mas guardamos o alvará", diz Piquet Carneiro. O mais cruel é a inexistência de qualquer vestígio de política pública para reduzir a interferência indevida do governo na vida das pessoas e das empresas. Não adianta dizer que a informática, a internet e o governo eletrônico facilitam a vida do cidadão. Ele apenas toma conhecimento mais depressa de que, havendo qualquer "pendência" perante o governo, não poderá vender, criar empresa ou comprar dólar para viajar. Veja-se o caso do imposto de renda. O Brasil é o país com o maior porcentual de declarações entregues pela internet – 98% das declarações são feitas on-line. É muito fácil pagar impostos. Se houver algum a pagar, basta preencher um único formulário, inclusive pela internet. Mas é quase impossível cobrar do Estado, mesmo quando há decisões judiciais compelindo o governo a efetuar pagamentos. Exemplo disso é a lei que determina que a cobrança de precatórios (dívidas reconhecidas pela Justiça que o Estado tem de pagar a empresas e pessoas) só poderá ser efetuada caso o credor não tenha nenhuma dívida de natureza fiscal. Ocorre que, na maior parte das vezes, o credor já deixou de pagar suas dívidas fiscais justamente porque não recebeu do governo. Se a mesma regra valesse para o Estado, o governo não poderia cobrar impostos dos cidadãos enquanto não controlasse seus gastos fiscais. Taí uma boa idéia.

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